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'O Mecanismo': polêmica prova que o Brasil não é para iniciantes

© Netflix / ReproduçãoSelton Mello no seriado "O Mecanismo".
Selton Mello no seriado O Mecanismo. - Sputnik Brasil
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Eventos políticos ou de impacto nacional costumam ser representados nas artes de uma forma ou de outra. A série "O Mecanismo" não foge à regra, mas a polêmica de sua repercussão levantou diversas questões. A Sputnik Brasil entrevistou 3 professores que comentaram o debate criado em torno do seriado lançado na sexta-feira (23) pela Netflix.

"Nós vivemos na era da informação. Uma das características da sociedade contemporânea é a disputa de narrativas, de informação. Então todo produto midiático que trate de uma temática política sempre vai despertar esse tipo de crítica, de avaliação. Não existe mais narrativa midiática ingênua".

A afirmação de Dennis de Oliveira, professor e pesquisador e Comunicação da Universidade de São Paulo (USP), à Sputnik Brasil, diz muito sobre as discussões acaloradas geradas em torno da série "O Mecanismo", que segue uma espécie de padrão das obras do diretor José Padilha. Dessa vez, a série surfou na profunda divisão política vivida no Brasil.

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"O Mecanismo" tem 10 episódios de cerca de 40 minutos cada, e é baseada em fatos reais da operação Lava Jato. O diretor e sua nova criatura foram alvos de uma chuva de críticas na internet, e a polêmica estampou a capa de diversos portais de notícia. Uma repercussão pouco ortodoxa, assim como a de Tropa de Elite, que se difundiu primeiro no camelôs em cópias piratas.

Padilha é conhecido defensor da Operação Lava Jato, que divide opiniões no Brasil. Em uma coluna de fevereiro de 2017, no jornal "O Globo", ele já falava de forma exaustiva no tal "mecanismo de explorar o povo brasileiro".

Acusada por movimentos sociais de divulgar informações falsas, a série gerou protestos que foram desde o cancelamento de assinaturas da Netflix por diversas pessoas, até uma declaração pública de Dilma Rousseff, que acusou a série por "propagação de mentiras" e "assassinar reputações".

​Na série, Lula vira João Higino, que toma uma das frases mais famosas das delações premiadas da Lava Jato para si, quando enuncia o "estancar a sangria" dito pelo senador Romero Jucá (MDB-RR) em gravações entregues à Polícia Federal. Trechos como esse, viraram acusações de intenções políticas.

O que arte tem a ver com política?

Durante a ditadura militar no Brasil, músicos como Chico Buarque, cineastas como Glauber Rocha, diretores como José Celso Martinez e atrizes como Marília Pêra foram perseguidos por suas performances e produtos culturais. Assim como nos anos 1990, cantores e cantoras de rap criavam letras complexas para colocar nas batidas a violência diária de um dos países mais violentos do mundo e recebiam ameaças constantes por isso.

Não é de se estranhar que o momento político conturbado que se vive no Brasil também fosse gerar uma série de produtos culturais que discutam o contexto.

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Para o professor Dennis de Oliveira, sempre há intenção política nas obras midiáticas e de arte. "Toda obra de arte, toda obra comunicacional, independente da intenção ou não do autor, tem um impacto político", afirma o pesquisador e jornalista.

É o mesmo que pensa o professor Pedro Peixoto Curi, coordenador do curso de Cinema e Audiovisual da Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro (ESPM-RJ), que falando à Sputnik Brasil, apontou que não é a primeira vez que isso acontece. "Toda escolha é política. O fato de que você tem alguém desenvolvendo isso agora é uma decisão política. […] Não é uma discussão nova. Você teve toda uma discussão em torno da campanha do Collor quando a Globo lançou ‘Que rei sou eu?'", lembrando uma novela de 1989 que satirizou a situação política do país, utilizando da influência do gênero.

Osvando Morais, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (UNESP), contou à Sputnik Brasil que a liberdade do artista depende do contexto político: "Todo artista tem uma certa liberdade de criação. A liberdade poética, vamos dizer assim. Mas quando a liberdade poética ganha um peso político no contexto atual, ela muda de valor".

O professor Dennis de Oliveira acredita, inclusive, que José Padilha sabe muito bem que a política não se descola da arte e da mídia. "Qualquer tipo de produto midiático que você faça que trate de um assunto contemporâneo em particular sempre vai ter um impacto político. Se a pessoa fala que não tinha intenção, ou ela é ingênua, que é uma coisa que não é admissível para um cineasta com a experiência do Padilha, ou o cara não está sendo sincero", avalia.

Já o professor Osvando Morais lembra da frase de Romero Jucá sendo atribuída ao personagem de Lula na série de Padilha para questionar o sentido político dessa escolha. "Eu achei de uma preguiça absoluta. Por que ele não recriou essa frase, já que ele está fazendo ficção? O ponto de partida dele é a realidade, mas ele está usando a realidade para fazer ficção. Já que ele está fazendo ficção por que não recriar a frase? Ou inventar uma outra frase muito próxima ou parecida, que tenha o mesmo sentido semântico. […] Acho isso muito perigoso, com um propósito político muito perigoso", conclui o pesquisador.

A mídia é assim tão poderosa?

Boa parte da discussão online se deu em torno do papel da série em uma tentativa de manipulação da realidade para influenciar o público. Mas isso parte de um pressuposto já superado de que a mídia tem um poder de influência onipotente. Acontece que no senso comum a mídia em geral tem um poder avassalador, o que não é bem verdade, como explica o professor Dennis Oliveira

"Eu não partilho daquela ideia de que a mídia de massa tenha um poder total. Ela tem o poder sim, de agendar temáticas, estabelecer prioridades, angulações e etc. Mas sempre há outras contra-narrativas, como as dos movimentos sociais, das mídias alternativas […]. Então eu não compartilho daquela ideia de que automaticamente os conteúdos da mídia vão gerar automaticamente uma reprodução na população".

O professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Pedro Peixoto Curi, lembra que os produtos midiáticos ainda são confundidos de forma errônea com máquinas de consenso e de criação de comportamento: "Tem muita gente que defende que ver filme violento torna as pessoas violentas, que jogar video-game leva alguém a ficar violento se o video-game for violento. Eu não acredito nisso".

No entanto, essa percepção de uma mídia toda poderosa, que é um exagero, tem também um fundo de verdade quando aponta que há uma influência sobre a vida em sociedade. Como afirma Pedro Peixoto Curi:

"Os meios de comunicação têm um papel muito forte na divulgação de ideias e na formação de opinião. A história é escrita para alguém, a história é sempre escrita por um ponto de vista. Então se você tem a história nacional contada por uma série, aquilo de alguma forma vai entrar no imaginário das pessoas".

Já para Dennis de Oliveira, o que a série "O Mecanismo" ativou foi uma disputa que já estava posta na sociedade. Uma condição climática que atingiu patamares de violência recentemente e que aumenta a responsabilidade dos produtores.

Dois casos recentes servem de termômetro para os ânimos políticos no Brasil, apontando uma radicalização da intolerância política que vem crescendo nos últimos anos. São os casos do assassinato de Marielle Franco, no Rio de Janeiro, e do ataque a tiros que sofreu a caravana do ex-presidente Lula, no Paraná.

"Boa parte dessa intolerância se expressa pela disseminação do que começou a se chamar de fake news, de informações falsas. Então em uma era em que você tem esse tipo de situação, de intolerância, de radicalidade, de falta de diálogo, alimentado pela disseminação de informações falsas, um produto midiático como esse que contribui para a disseminação de informações falsas acaba sendo muito prejudicial", aponta o professor Dennis de Oliveira, lembrando a ascensão das notícias falsas, muito presentes no caso de Marielle Franco, que chegou a ser acusada de envolvimento direto com o tráfico.

"Então eu vejo muito mais no sentido de ele contribuir para acirrar os ânimos, acirrar a radicalidade e criar situações mais complicadas do que já estão do que necessariamente de influenciar a opinião pública", conclui o pesquisador da USP.

A ficha de José Padilha

Já não é de hoje que o diretor José Padilha fala de temas espinhosos com policiais em suas obras. Em meados de 2007 "Cadê o baiano?" se tornou frase célebre no Brasil. A fala do Capitão Nascimento se espalhou rapidamente. O protagonista de Tropa de Elite, filme que fez decolar a carreira do diretor José Padilha, retratava um policial do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o agora famoso BOPE, da polícia militar do Rio de Janeiro.

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Tropa de Elite sequer havia sido lançado, mas a pirataria o havia transformado em filme do momento. Meses antes do lançamento e da edição final, era possível comprar uma cópia do filme por não mais que R$ 10,00 ou então baixar uma cópia na internet. Um pré-lançamento irônico de um obra já com licença poética e moral duvidosa, que romantizava a violência nos morros cariocas e transformava em super herói um policial violento.

Pouco mais de uma década depois, e com alguns reais a mais, é possível pagar uma assinatura mensal no site de streaming Netflix e assistir a série "O Mecanismo".

Com menos bordões do que as obras que deram fama a Padilha, a obra não foge da política, da polícia, e da polêmica. Após Tropa de Elite 2, o remake do norte-americano Robocop, e uma participação na direção de Narcos, José Padilha continua com um protagonista policial em "O Mecanismo", o agente da Polícia Federal, Marco Rufo.

Qual é a influência da Netflix nisso tudo?

"O Mecanismo" não é a primeira obra midiática a discutir a crise política no Brasil, muito menos a Lava Jato. Em 2017, o filme "Polícia Federal: a Lei é para todos", do diretor Marcelo Antunez, criou uma polêmica parecida com um filme que retrata fatos semelhantes aos de "O Mecanismo" no âmbito da Lava Jato. Outro filme que retrata a crise política brasileira foi "O Processo", de Maria Augusta Ramos. Lançado em 2018 no prestigiado Festival de Berlim, o documentário retrata os bastidores do processo de impeachment que retirou Dilma Rousseff do poder. O filme terminou o Festival sendo premiado.

No entanto, nenhuma dessas obras conseguiu o mesmo alcance imediato visto pela obra de José Padilha. Para o professor Pedro Peixoto Curi, da ESPM, isso se deve diretamente ao poder da Netflix.

"Se você pensar no alcance do Netflix, no alcance de um longa metragem em circuito comercial nacional, e um alcance de um filme que está correndo festivais, a repercussão é proporcional a esse alcance. O Netflix alcança muito mais pessoas do que um filme nacional em cartaz no Brasil", afirma o professor, que lembra que apesar de o filme de Marcelo Antunez ter sido comentado, o site de streaming tem mais influência nas redes sociais.

​"Teve uma polêmica em torno do filme [Polícia Federal: a Lei é para todos] também. Até em relação a uma suposta manipulação da realidade. […] O Netflix tem mais alcance. E não é nem mais alcance só em número de pessoas […] mas também penetração em rede social. O Netflix, o ambiente dele é na internet. Então é normal que se discuta muito sobre isso na internet", conclui.

O que leva a um outro ponto tocado pelo debate em torno da série "O Mecanismo", levantando críticas diretas à própria Netflix. A empresa faz parte de um novo tipo de plataforma de comunicação, que é global e tem pouca regulação dentro dos países.
"A questão é que você precisa ter uma regulação, em termos de mercado, que dê conta de todos esses canais. Todo canal internacional para chegar a um outro país precisa seguir uma série de normas, e nesse sentido o Netflix não passa [por isso]", aponta Pedro Peixoto Curi, da ESPM.

"Isso é um problema. O que está acontecendo agora, uma das características desse novo monopólio dos meios de comunicação de massa é que eles estão saindo daqueles conglomerados tradicionais, como no caso da Globo, como no caso mundial, o grupo Time/Warner, grupos grandes que eram empresas de produção de conteúdo, para ser agora o que está se chamando de ‘plataformas de distribuição'", aponta o pesquisador da USP, Dennis de Oliveira.

Para o professor Dennis, essas plataformas de distribuição de conteúdo são um modelo de negócio que ainda não foi compreendido pelos Estados, o que deixa a legislação local frágil diante do desenvolvimento de seus mercados de mídia em contínua expansão e transformação.

"É o caso do Netflix, do próprio Youtube, Google, Facebook e etc. São empresas que distribuem conteúdos, na verdade, a produção de conteúdos é terceirizada. E como são plataformas que utilizam as tecnologias da comunicação, que são globais, elas não estão submetidas a essas regulações locais. Então isso é um desafio. A atual legislação, a atual regulamentação da mídia, que nós temos no Brasil e na maior parte dos países do mundo, ela não dá conta dessa nova configuração dos monopólios. Uma questão que precisa ser debatida e refletida para ver como se tratar disso", explica Dennis de Oliveira.

Qual é a responsabilidade do artista?

Com os ânimos à flor da pele no Brasil, a arte pode ajudar a discutir a política, e o debate é importante para desnudar as narrativas falsas. As contradições e as problemáticas vêm apenas com as discussão e o debate.

Nisso acredita o professor Pedro Peixoto Curi, que lembra que a arte tem exatamente a função de colocar o dedo na ferida. "Eu acho que essa é uma das funções da arte. É lançar esse olhar para a realidade e levar esse olhar para a discussão entre as pessoas. Para tornar aquilo público de uma outra maneira", conclui.

Já Osvando Morais, pesquisador em Comunicação da UNESP, prefere lembrar do poder da obra de arte em trabalhar no ser humano a sua capacidade única de acreditar na ficção. O que entrega ao artista uma responsabilidade fundamental.

"Uma obra de arte tem esse poder de magnetizar as pessoas. Ela também tem esse poder de transporte, transportar as pessoas para um outro mundo, para uma outra realidade. Como ela tem esse poder de transportar as pessoas para um outro mundo, há de se ter um cuidado muito especial quando a gente trabalha uma obra", afirma.

Osvando continua, e finaliza aprofundando a reflexão de que nenhuma arte é neutra:

"Tem determinados limites, determinadas fronteiras que o artista, quando trabalha com isso, tem que ter um certo cuidado. Porque você está trabalhando com a história viva. As pessoas estão vivas, as pessoas estão em movimento, as pessoas estão atentas. […] Nenhuma arte é independente. Toda arte tem um determinado vínculo com seus patrocinadores, com seus autores. O autor tem uma ideologia, o autor defende um ponto de vista, o autor defende uma visão de mundo".

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