Guaidó, deputado da oposição que se declarou chefe do executivo da República Bolivariana há pouco mais de um mês, veio ao Brasil renovar o apoio recebido do país após o fracasso de uma investida para levar à força ajuda humanitária norte-americana e brasileira à Venezuela pelas fronteiras de Brasil e Colômbia no último final de semana, manobras vistas pelo presidente de facto, Nicolás Maduro, como tentativas internacionais de desestabilizar o seu governo, segundo o qual a Venezuela já recebe ajuda frequente por outras vias.
— Asamblea Nacional (@AsambleaVE) 28 de fevereiro de 2019
"Juan Guaidó no Brasil: seguirei lutando pelo ingresso da ajuda humanitária."
Após a reunião da última quinta-feira, em Brasília, Bolsonaro pronunciou mais uma vez o apoio ao colega e ao restabelecimento da "democracia" na Venezuela, prometendo fazer o possível, "apesar dos problemas" brasileiros, para devolver a "liberdade" aos "homens e mulheres" do Estado vizinho. Mas que interesses e preocupações mobilizam o Brasil no que diz respeito à crise venezuelana?
Desde o final do governo de Hugo Chávez, a Venezuela vem enfrentando sérios problemas econômicos, intensificados, a partir do ano seguinte, por sucessivas quedas no preço do petróleo, produto que responde por uma gigantesca parcela da economia nacional. Nesse cenário, a administração do presidente Nicolás Maduro se tornou alvo constante de protestos organizados por opositores, que, aos poucos, foram conquistando cada vez mais apoio interno e, principalmente, externo, para pressionar o governo.
A presidenta Dilma Rousseff preferiu evitar críticas a Maduro e seus aliados até os últimos dias, mas posição oficial do Brasil em relação aos vizinhos sofreu uma repentina mudança com a chegada ao poder de Michel Temer, cujo governo, à época, praticamente minou qualquer possibilidade de mediação do impasse venezuelano ao endossar o discurso da oposição em Caracas, com os chanceleres José Serra e Aloysio Nunes criticando abertamente as políticas de Maduro.
Enquanto a crise se deteriorava, crescia significativamente o fluxo de migrantes venezuelanos para outros países da América do Sul. Estima-se que, dos mais de 3,4 milhões que tenham deixado sua terra natal, quase 100 mil tenham vindo para o Brasil, maior país do subcontinente, se concentrando principalmente em Roraima, que teve sua fronteira com o estado venezuelano de Bolívar fechada no último dia 21, por ordens do governo da Venezuela.
— Acnur/Unhcr Américas (@ACNURamericas) 28 de fevereiro de 2019
O recente fechamento de fronteira entre Pacaraima, do lado brasileiro, e Santa Elena de Uairén, cidade venezuelana que é palco de conflitos entre opositores e forças leais a Maduro, foi motivado pelos preparativos do governo Bolsonaro para enviar, contra a vontade da Venezuela, caminhonetes carregadas com alimentos para o território venezuelano, gerando desentendimentos entre os dois países.
Se, por um lado, essa situação reduziu consideravelmente a entrada de imigrantes em um município com pouquíssima estrutura para atender a tanta gente, por outro, impactou negativamente a já comprometida economia local, dos dois lados da fronteira.
"Nosso comércio está prejudicado há três anos e oito meses já. Desde quando começou essa crise na Venezuela, nós somos prejudicados", disse à Sputnik Brasil o proprietário de um restaurante em Pacaraima, Manoel Soares, se queixando da falta de clientes, reclamação também feita por donos de mercados, taxistas e outros trabalhadores do setor de comércio e serviços.
Segundo eles, antes do fechamento da fronteira, a cidade recebia uma grande quantidade diária de imigrantes, mas também profissionais e consumidores que ajudavam a movimentar a economia do município, onde encontravam itens escassos na Venezuela. Após o fechamento, os consumidores praticamente desapareceram, enquanto alguns imigrantes continuaram chegando através de rotas alternativas, conhecidas na região como "caminhos verdes".
Já os pacaraimenses, que se deslocavam até Santa Elena principalmente para abastecer seus veículos, passaram a ter que ir até Boa Vista, a mais de 200 quilômetros, atrás de combustível, bem mais caro do que o venezuelano.
A crise evidenciada em Pacaraima tem atingido, na verdade, todo o estado de Roraima, que, de acordo autoridades locais, não tem recebido todo o apoio necessário por parte do governo federal. O setor de saúde, por exemplo, entrou em colapso nesta semana devido à falta de recursos para atender os pacientes brasileiros e também os venezuelanos vítimas de confrontos do outro lado da fronteira.
A decisão do governo brasileiro de deixar guardada a ajuda humanitária que deveria ser enviada a Santa Elena gerou questionamentos entre políticos, jornalistas e, principalmente, imigrantes famintos. Afinal, se a ideia era ajudar os venezuelanos, por que não dar os alimentos às inúmeras pessoas com fome que dormem ao longo das mesmas ruas por onde passaram os caminhões de mantimentos?
Imigrantes ouvidos pela Sputnik afirmam que todos os venezuelanos vivendo em Pacaraima e Boa Vista se sentem muito gratos pelo acolhimento do Brasil. Por esse motivo, preferem não exigir nada, mesmo ainda vivendo em profunda necessidade, não muito distante da realidade que encontravam na Venezuela. A diferença é que aqui, quando algum deles encontra algum bico para fazer, o pouco dinheiro que ganha costuma render mais, devido à força da moeda.
"Nós temos fome, precisamos e queremos trabalhar, mas como vamos exigir alguma coisa?", questionou um imigrante, reconhecendo que a ajuda dada pelo Brasil aos migrantes é insuficiente e que, em geral, eles passam os dias pelas ruas, a espera de um emprego que nunca chega. "Ninguém nos explica nada".
Para o especialista em migração e direitos humanos Fernando Brancoli, professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID — UFRJ), a dificuldade para se atender de forma adequada as necessidades dos imigrantes em Roraima pode decorrer de questões administrativas ligadas ao período de transição entre governos, mas é preciso se considerar a possibilidade de falta de vontade política também.
Segundo ele, uma maneira efetiva de atenuar essa crise humanitária tanto para os migrantes como para as autoridades seria o remanejamento, que não está sendo feito a um ritmo hábil.
"Nós vamos para qualquer lugar do Brasil que quiserem nos mandar, desde que tenha trabalho", explicou um migrante em conversa com a Sputnik enquanto se preparava para dormir na calçada de um estabelecimento de Pacaraima, onde as temperaturas costumam cair bastante durante a noite.
De acordo com esse venezuelano, o investimento brasileiro em ajuda humanitária que não consegue cruzar a fronteira poderia ser dividido de maneira a criar melhores condições para aqueles que passam necessidades também em território brasileiro. Aqui, conforme ele e seus colegas explicaram, boa parte da ajuda recebida vem de voluntários e de compatriotas que tiveram mais sorte em sua jornada ao deixar a Venezuela.
À medida que o Brasil se aproxima de Guaidó para pressionar Maduro, o governo se vê obrigado a encarar importantes desafios que ultrapassam a zona de fronteira. Além dos problemas humanitários e econômicos em Roraima, o estado, que não está integrado ao Sistema Interligado Nacional (SIN), também lida com o fato de consumir energia importada diretamente da Venezuela, que, apesar dos blecautes, segue sendo a opção mais viável até o momento. Isso porque a única alternativa atualmente são as usinas termelétricas, que produzem energia mais cara e poluem mais.
Para contornar essa situação, o Conselho de Defesa Nacional aprovou a construção do chamado Linhão de Tucuruí, qualificando a obra, que deve começar nos próximos meses, como de interesse nacional. Para colocar em prática o projeto, que afetará territórios ocupados por comunidades indígenas, o Ministério do Meio Ambiente pretende acelerar o licenciamento, que se encontra parado há anos.
A expectativa, porém, é a de que as obras só sejam concluídas após três anos. Até lá, Roraima continuará dependente da Venezuela e das termelétricas, que, em 2018, custaram R$ 597 milhões aos consumidores brasileiros, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).