O caso de maior repercussão foi a suspensão pelo Ministério da Cidadania de edital lançado ano passado para selecionar séries para emissoras públicas de televisão. Dentre as 14 categorias apoiadas, há diversidade de gênero e sexualidade.
No dia 7 de outubro, a Justiça Federal, por meio de liminar, determinou a conclusão do edital. O governo entrou com recurso para barrar a medida no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, mas o juiz Alfredo Jana de Mora não acatou o pedido.
Veto causa prejuízo aos cofres públicos
Uma semana antes de o Diário Oficial suspender o edital, em portaria assinada pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, o presidente Jair Bolsonaro, durante transmissão ao vivo na internet, citou 4 projetos pré-selecionados. Todos eles abordam questões de sexualidade e gênero. O presidente disse que as obras iriam para "o saco".
A decisão da Justiça atende pedido do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, que entendeu ter ocorrido "discriminação contra pessoas LGBT promovida ou referendada por agentes públicos", o que "constitui grave ofensa aos princípios da honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições".
O MPF também ajuizou ação por improbidade administrativa contra Terra e apontou dano ao erário, pois o governo federal havia gasto quase R$ 1,8 milhão na análise das 613 propostas que disputavam o edital. O órgão pede que Terra devolva a quantia.
O cancelamento, somado a outros episódios recentes, demonstra que pode haver uma tendência do governo para controlar a produção cultural. Nos casos que foram parar na Justiça, além da acusação de censura, surge outro argumento muito forte: o prejuízo aos cofres públicos.
Perseguição ideológica pode 'afundar indústria' imensa
As séries de TV seriam bancadas pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), gerido pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), com previsão de R$ 70 milhões.
Para Cíntia Domit Bittar, da diretoria colegiada da Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual, a suspensão foi uma "arbitrariedade", um "disparate" e um "contrassenso".
"Desde 2018 intensificou-se uma política mais liberal que prejudica as pequenas empresas, maioria do setor. Agora vemos uma perseguição ideológica que se concretiza em censura. É um absurdo afundar uma indústria que gera 300 mil empregos e vinha crescendo exponencialmente, até mais do que setores tradicionais como têxtil e farmacêutico", disse Cíntia à Sputnik Brasil.
A Justiça do Rio de Janeiro também entrou em cena e intimou a União a explicar os motivos do cancelamento. A decisão tem como base ação popular movida pelo ex-ministro da Cultura e deputado federal Marcelo Calero (Cidadania-RJ).
O texto da portaria diz que a suspensão se dará pelo prazo de 180 dias, prorrogável por igual período, em decorrência "da necessidade de recompor os membros do Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual".
O Ministério da Cidadania argumenta que o concurso não foi discutido por este governo e que "por se tratar de recursos públicos" decidiu pela suspensão com "intenção de analisar os critérios de sua formulação", e que o "próprio edital previa a possibilidade de suspensão".
"Claramente foi um caso de censura, não há explicação plausível para o cancelamento. A justificativa é a ausência de uma medida que cabe ao próprio ministro tomar", disse Calero à Sputnik Brasil.
Reação em cadeia
O sentimento da classe cultural é de que um cancelamento acaba levando a outro, numa reação em cadeia que atinge várias instituições, tanto públicas como privadas.
A deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG) acusa o governo de promover a censura como política de estado. "O governo federal tem papel de indução. Vemos um efeito em cadeia da censura institucionalizada, que legitima práticas para vários setores, prefeituras e governos estaduais", disse à Sputnik Brasil.
"Eles argumentam que não se pode financiar nada ideológico, mas ideológico para eles é quem pensa diferente”, acrescentou.
Vice-presidente da Comissão de Cultura da Câmara, ela entrou com representação junto à Procuradoria-Geral da República, ao lado de outros parlamentares do PSOL, pedindo explicação sobre um edital para longas de ficção da BB DTVM, subsidiária do Banco do Brasil, no qual teria havido censura prévia.
No formulário de inscrição dos projetos havia perguntas como: "a obra tem cunho religioso ou político?" e "serão exibidas cenas de nudez ou sexo explícito?".
"O edital estabelece critérios que não são de interesse de políticas públicas, e sim controle ideológico. É uma ilegalidade, que contraria os fundamentos da liberdade de expressão, além de ameaçar a produção e a diversidade cultural", disse a parlamentar.
A representação pede a anulação do edital. O processo foi distribuído para o procurador Felipe Fritz Braga, mas ainda não houve nenhuma iniciativa por parte da PGR.
"As instituições precisam reagir", afirmou Áurea.
Produtores culturais dizem que as exigências dos editais de órgãos públicos aumentaram. Segundo a classe, há maior dificuldade de liberação de projetos devido à fiscalização da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) do governo Federal. O órgão nega que haja controle de temas.
Justiça ainda é uma esperança
As denúncias de censura se espalham pelo Brasil. A companhia potiguar Clowns de Shakespeare teve a apresentação do espetáculo infantil Abrazo, que aborda o tema da repressão, cancelada na Caixa Cultural do Recife após a primeira encenação da peça.
"Minutos antes da segunda apresentação fomos informados da suspensão do contrato", contou à Sputnik Brasil o produtor do grupo, Rafael Telles. O edital previa 8 apresentações da peça, baseada em livro de Eduardo Galeano, além de rodas de conversas e oficinas.
Segundo a Caixa, o contrato foi cancelado devido ao conteúdo do bate-papo entre elenco e plateia. De acordo com a instituição, a conversa configurou infração à cláusula do contrato que trata da obrigação de "zelar pela boa imagem dos patrocinadores".
De acordo com Telles, a instituição "não informou exatamente o que foi dito que violava as regras".
"Não recebemos antecipação de pagamento. Contratamos equipe e pagamos itens como passagens e divulgação do nosso próprio bolso", criticou o produtor.
A Clowns de Shakespeare decidiu entrar na Justiça Federal de Pernambuco para reverter a rescisão. A Caixa contestou o pedido e o caso segue em andamento.
Paralelamente, o Ministério Público Federal de Pernambuco ajuizou ação contra a Caixa Econômica Federal determinando a retomada do contrato com a companhia. Segundo o MPF, houve “prática de censura, vedada pela Constituição”. A ação pede indenização por danos morais coletivos, aplicada em campanhas de conscientização do direito à liberdade de expressão e à liberdade artística.
'Censura não é crime'
Marcelo Calero aponta uma dificuldade para se combater uma escalada da censura no país: a prática não é tipificada como crime, embora a Constituição garanta a liberdade de expressão.
O ex-ministro da Cultura diz que "existe um espírito censor" por parte do governo, aplicado de forma ainda "envergonhada, com argumentos técnicos que não têm consistência".
"Censurar no Brasil não é crime, infelizmente. Existe um baixo custo jurídico. Por isso estamos elaborando um projeto para deixar o preço disso mais caro, tipificando melhor a censura e dando um instrumental mais claro ao Judiciário", afirmou.
Nas últimas semanas, houve mais suspeitas de vetos. Em Brasília, a Caixa Cultural pediu a retirada do espetáculo "Gritos" do programa apresentado pela companhia Dos à Deux. A peça tem como protagonista uma personagem travesti.
"Tem havido censura por parte da Secom sim, o que nunca tinha acontecido antes. Era um órgão burocrático. Com certeza a temática da peça desagradou. Mas tudo isso vai nos dar força para falar o que está ocorrendo no Brasil. No próximo espetáculo vamos falar sobre o medo. Não dá para criar pensando em censura", disse à Sputnik Brasil o ator e diretor Artur Luanda Ribeiro, da Dos à Deux.
Na Caixa Cultural do Rio, dois episódios: mostra sobre a cineasta Dorothy Arzner, que discutiria temas como feminismo e homossexualidade, foi cancelada; assim como o evento Aventuras do Pensamento, ciclo de palestras para o público infantojuvenil que abordaria assuntos como democracia e ciência.
Também no Rio, o Centro Cultural do Banco do Brasil excluiu de mostra comemorativa dos 30 anos da instituição a peça "Caranguejo Overdrive", da companhia Aquela Cia. O espetáculo tem conteúdo político.
As instituições negam controle de conteúdo e apontam razões técnicas para os cancelamentos. O Tribunal de Contas da União (TCU) vai apurar a regularidade dos atos.
Não é censura, é preservar valores?
O deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), por sua vez, argumenta que as instituições têm direito de decidir o que apoiam.
"Se existe conteúdo divergente ideologicamente ao patrocinador, privado ou governamental, é um direito dele decidir o que patrocinar ou não. O governo do PT nunca patrocinou nenhum projeto cultural de valorização da fé cristã, ao contrário, sempre apoiou projetos de pautas que a esquerda defende", disse à Sputnik Brasil.
No início de setembro, um beijo entre super-heróis, homens, na capa de uma HQ foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Tudo começou quando o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, se incomodou com "Vingadores, a cruzada das crianças", à venda na Bienal do Livro. Para ele, a publicação teria material inadequado, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
A história aborda uma equipe de heróis que tem um casal de namorados. Para a prefeitura, a capa do livro deveria estar lacrada e conter aviso de advertência.
Guardas Municipais foram enviados à Bienal para recolher a publicação. A feira entrou com mandado de segurança preventivo e a Justiça do Rio de Janeiro proibiu o veto. Crivella recorreu ao Tribunal de Justiça, que concedeu liminar autorizando a apreensão.
Em mais um capítulo, os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, em despachos separados, suspenderam o recolhimento. Mendes citou "verdadeira censura prévia" e "patrulha do conteúdo de publicação artística" em sua decisão.
Para Rafael Telles, "diante de todos esses casos, tudo leva a crer que têm ocorrido episódios de censura". Em seus 20 anos de carreira, ele afirma que "nunca tinha visto situação semelhante".
Durante o 3.º Simpósio Conservador de Ribeirão Preto, Jair Bolsonaro defendeu o governo.
"A gente não vai perseguir ninguém, mas o Brasil mudou. Com dinheiro público não veremos mais certo tipo de obra por aí. Isso não é censura, isso é preservar os valores cristãos, é tratar com respeito a nossa juventude, reconhecer a família", afirmou.
Sóstenes apoia o presidente: "Agora o errado, o censurador, é o Bolsonaro? Ele está coberto de razão. No governo da esquerda nem sequer a música gospel foi reconhecida como cultura no Brasil. Se alinhamento ideológico for censura, o PT e a esquerda são os maestros da censura do Brasil".
Para a deputada Áurea Carolina, o argumento da preservação de valores esconde um desejo de proibição. "Eles argumentam que não se pode financiar nada ideológico, mas ideológico para eles é quem pensa diferente", disse.