Postura do MEC com o Enem aprofunda desigualdade e pode impulsionar COVID-19, dizem entidades

© Foto / Agência Brasil/Marcelo CamargoMinistro da Educação, Abraham Weintraub, participa de audiência conjunta de comissões da Câmara, Brasília, 22 de maio de 2019
Ministro da Educação, Abraham Weintraub, participa de audiência conjunta de comissões da Câmara, Brasília, 22 de maio de 2019 - Sputnik Brasil
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Após pressão, o Enem de 2020 foi adiado pelo governo federal. A postura original do Ministério da Educação (MEC) contrasta com a realidade dos estudantes. A Sputnik Brasil consultou uma rede de cursinhos populares, um infectologista e uma ONG de educação sobre a possibilidade do Enem ocorrer em meio à pandemia.

Os principais exames de ingresso em universidades no mundo foram cancelados ou adiados diante da pandemia do novo coronavírus. Entre eles, o SAT, nos Estados Unidos, e o Gao Kao, na China. No Brasil, o Enem só foi adiado após pressão de movimentos sociais. De início, a postura do MEC, liderado pelo ministro Abraham Weintraub, tentou manter o exame em novembro deste ano sob o mote de que "o Brasil não pode parar".

Após a aprovação no Senado Federal do adiamento do exame, o governo decidiu recuar e adiou a prova para uma data ainda não definida, entre dezembro deste ano e janeiro de 2021.

"O adiamento do Enem foi resultado de ampla mobilização social, se dependesse do MEC tudo seria mantido", afirma Salomão Ximenes, professor da UFABC e membro da Ação Educativa, organização que promove o acesso à educação no Brasil.

Para Ximenes, o adiamento da prova é "absolutamente insuficiente" e pode agravar as desigualdades sociais no exame devido à pandemia. O professor universitário defende a instalação de uma ampla comissão de coordenação federativa e social com as principais entidades do setor para planejar ações relacionadas ao Enem, levando em conta a evolução da pandemia.

"Medidas de reparação aos estudantes potencialmente mais prejudicados, com ampliação da reserva de vagas a alunos de escolas públicas e de baixa renda, por exemplo, e coordenação com os calendários letivos das universidades e faculdades, a serem definidos", aponta Ximenes, que também integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU).

Posição de Weintraub potencializa desigualdades e pressiona estudantes pobres

Uma das entidades educacionais que se posicionou pelo adiamento do Enem foi a UNEAFRO. A organização é uma das maiores redes de cursinhos populares do Brasil, atendendo mais de 1,5 mil alunos de baixa renda nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro.

© Folhapress / Renato Costa/FramePhoto/FolhapressAbraham Weintraub, ministro da Educação durante apresentação e debate do projeto Future-se, do Ministério da Educação, na comissão de finanças e tributação da Câmara dos Deputados, em Brasília no dia 28 de agosto de 2019
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Abraham Weintraub, ministro da Educação durante apresentação e debate do projeto Future-se, do Ministério da Educação, na comissão de finanças e tributação da Câmara dos Deputados, em Brasília no dia 28 de agosto de 2019

Adriano Sousa, coordenador de núcleos nas regiões de São Mateus e Sapopemba, na periferia de São Paulo, explica que a COVID-19 fez com o que a maior parte dos mais de 30 núcleos de ensino do grupo fossem paralisados. 

Mesmo com os esforços de professores, a realidade social dos alunos durante a pandemia gerou uma "baixíssima" adesão às aulas via Internet. Os estudantes lidam com falta de dinheiro, trabalho precoce, problemas de acesso à Internet e escassez de plataformas para assistirem às aulas.

É a partir desse contexto que Adriano critica a postura do MEC em relação ao Enem.

"Infelizmente essa questão do Enem é mais uma das frentes em que o governo Bolsonaro está brincando com a vida da população. Está tripudiando e dando pouca importância para a vida da maioria da população, principalmente a população pobre e dentro desse grupo, a população negra", afirma o coordenador da UNEAFRO em entrevista à Sputnik Brasil.

Diante das dificuldades dos alunos, a organização tem se empenhado em garantir apoio psicológico aos estudantes e gerir um sistema de distribuição de cestas básicas em torno dos núcleos de ensino estabelecidos nas periferias de São Paulo e Rio.

© REUTERS / Ricardo MoraesCoveiros preparam enterro de vítima do novo coronavírus, no Rio de Janeiro, 18 de maio de 2020
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Coveiros preparam enterro de vítima do novo coronavírus, no Rio de Janeiro, 18 de maio de 2020

Em torno dessas dificuldades, os estudantes pobres acumulam a pressão comum do vestibular com a pressão pelo sacrifício e pela superação, uma cruel exigência social fomentada pela postura do MEC, aponta Adriano.

"Você tem essa pressão social contra [o estudante] também, de uma sociedade ideologicamente doente que acha que o sacrifício além daquilo que o indivíduo pode ou tem possibilidade é algo que ele tem que fazer, e [isso] é mais um fator de pressão sobre os estudantes. E essa decisão do Weintraub de manter o Enem até o último minuto potencializa esse conflito social e ideológico que a gente está vivendo", explica.

Fazer o Enem de luto e com família desempregada

Apesar do recuo concretizado na aceitação em adiar o Enem, o governo anunciou uma espécie de plebiscito entre os inscritos sobre o adiamento, o que a UNEAFRO também critica, apontando que o debate no Congresso Nacional seria mais adequado para encontrar as melhores soluções para o problema.

"É péssimo [o plebiscito]. A gente preferiria que fosse aprovado um projeto de lei, algo mais sólido, algo que partindo do Congresso representaria a vontade da sociedade, que representaria a vontade de todos os grupos que reivindicaram o adiamento do Enem", aponta.

Questões como a definição do final do ano letivo em meio a um período de incertezas estão entre as arestas que ainda preocupam os educadores. Para Adriano, a discussão no Congresso facilitaria a resolução desses problemas específicos.

"Haveria toda uma discussão no Congresso sobre o que seria esse fim do ano letivo, haveria outras propostas de emendas para melhorar o projeto de lei para que houvesse um prazo minimamente decente para que os nossos estudantes pudessem sentar a b***a na cadeira e estudar", diz o coordenador da rede de cursinhos populares.

A possibilidade de uma prova digital também é criticada pelo dirigente da UNEAFRO, que afirma que o atual regime de ensino à distância em São Paulo, por exemplo, "é um fiasco" e poucos estudantes podem acessar os conteúdos de forma adequada.

© Folhapress / André CoelhoMinistro da Educação do Brasil, Abraham Weintraub, durante entrevista coletiva em Brasília, para tratar do ENEM 2020
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Ministro da Educação do Brasil, Abraham Weintraub, durante entrevista coletiva em Brasília, para tratar do ENEM 2020

Com um cenário de precariedade no acesso à tecnologia, entram ainda em cena o desemprego que cresce entre os mais pobres, forçando jovens a trabalharem ao invés de estudarem, e a própria morte nas famílias, que se espalha entre os estudantes de baixa renda e cobra o preço do luto.

"O resultado dessa pandemia vai ser, infelizmente, a morte de muitas pessoas queridas. Então soma-se a tudo isso o trauma de lidar com memória de morte na família, entre entes queridos. Então isso também tem que entrar na equação como algo que vai atrapalhar o desempenho nas provas", diz.

Enem em dezembro pode ocorrer em meio a tragédia, diz infectologista

O infectologista Éder Gatti, presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (SIMESP), afirma que aglomerações como a que o Enem causaria não poderão acontecer enquanto a maioria da população não tiver imunidade. Em 2019, o exame teve mais de 5 milhões de inscritos.

"Enquanto o vírus estiver circulando e a gente tiver pessoas suscetíveis na população, não tem como a gente fazer qualquer tipo de aglomeração. Então a prova deve ser feita depois que houver um controle da doença na comunidade", explica o infectologista e médico do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, em entrevista à Sputnik Brasil.

O médico diz que não é certo que mesmo em dezembro haja condições para a realização de uma prova como o Enem de forma presencial e que por isso, em sua opinião, a data da prova deve se manter flexível.

© REUTERS / Amanda PerobelliEquipe médica realiza exame de raio-X em paciente com COVID-19, em uma UTI de Guarulhos, São Paulo.
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Equipe médica realiza exame de raio-X em paciente com COVID-19, em uma UTI de Guarulhos, São Paulo.

Gatti explica que, partindo do pressuposto de que alguém que já foi infectado pela COVID-19 desenvolva imunidade à doença, apenas quando 70% da população estiver imunizada é que a doença estará sob controle.

"Isso só pode ser feito de duas formas: ou 70% das pessoas pegam a doença, ou é inventada uma vacina que imuniza e proteja 70% das pessoas. [...] Quando a gente vai chegar nesse patamar nós não sabemos", aponta o médico, que alerta que há estudos que projetam que o isolamento possa continuar de forma intercalada por até dois anos.

Diante dessas informações, o médico acredita que seja possível que a doença avance no Brasil para além dos 70% até dezembro, uma vez que ele considera as medidas de isolamento no país como "fracas".

"Se até dezembro a gente tiver esgotado a COVID-19 no Brasil, daria sim para fazer a prova do Enem. Só que se a gente chegar até dezembro com 70% da população já tendo tido a COVID-19, você pode ter certeza que a gente vai ter registrado uma grande tragédia nos meses anteriores", aponta o infectologista.
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