Nesta sexta-feira (22), a gigante de telecomunicações chinesa Huawei reportou forte retração em suas receitas, dando os primeiros sinais de que pode sucumbir às restrições impostas pelos EUA.
De acordo com a empresa, as receitas nos primeiros nove meses de 2020 recuaram 24,4% em relação ao mesmo período do ano passado.
"A cadeia global de fornecimento da Huawei está sob intensa pressão e sua produção e operação enfrentam crescentes dificuldades", informou a empresa em nota.
A Huawei se comprometeu a "fazer o melhor para encontrar soluções, sobreviver e seguir em frente".
Após mostrar relativa resiliência, a Huawei finalmente deu sinais de desgaste após os EUA imporem restrições em uma área-chave: acesso à tecnologia de microchips.
O Departamento de Comércio dos EUA adotou medidas para garantir que a Huawei não tenha acesso a semicondutores, incluindo chips produzidos por empresas estrangeiras que utilizem tecnologia norte-americana em seu processo produtivo.
Os EUA mantêm praticamente um monopólio em vários setores-chave da alta tecnologia, como a microeletrônica, biotecnologia e nanotecnologia.
Sua posição privilegiada permite que o país não só angarie boa parte do lucro advindo dessas tecnologias, mas também controle seu uso por países terceiros.
Biplolaridade tecnológica
Apesar do domínio norte-americano, a China está aumentando seu potencial tecnológico e hoje é o país mais bem posicionado para confrontar o domínio tecnológico dos EUA.
De acordo com Ruslan Yunusov, diretor do departamento de Tecnologia Quântica da Rosatom e diretor-geral do Centro Russo de Tecnologia Quântica, atualmente Pequim e Washington são os líderes disparados em quesitos como número de patentes, empresas no setor de inteligência artificial e supercomputadores.
Desde 2018, das 20 maiores empresas do ramo de Internet 12 são norte-americanas e 8 chinesas.
A China não só faz frente aos EUA no desenvolvimento de tecnologias de ponta, mas também se posiciona à frente de possíveis competidores, como Alemanha, Japão, Rússia e Coreia do Sul.
Combate tecnológico
Reunidos para debate sobre guerra tecnológica no 17º Encontro Anual do Clube de Discussão de Valdai em Moscou, especialistas frisaram que a principal característica da guerra tecnológica atual é o esforço dos EUA em desacelerar o desenvolvimento tecnológico de concorrentes.
No entanto, enquanto guerras comerciais são justificadas por interesses econômicos dos países, a guerra tecnológica é justificada pela segurança nacional.
"A guerra tecnológica contra a Huawei, por exemplo, é conduzida sob a bandeira de defesa da segurança nacional, mas na verdade é também uma tentativa de eliminar a concorrência", disse Yunusov à Sputnik Brasil.
Essa característica ficaria clara no caso da pressão norte-americana para impedir que aliados europeus adotem a tecnologia 5G fornecida pela Huawei.
"As empresas europeias não vão renunciar ao uso do 5G, mas terão que obter produtos de fornecedores mais caros. E quem vai pagar essa diferença serão os consumidores", alertou Yunusov.
De acordo com o diretor do Clube Valdai, Ivan Timofeev, essa política não interessa ao setor empresarial europeu.
"Pode ser que, do ponto de vista da segurança nacional, algumas medidas sejam, de fato, necessárias", disse Timofeev à Sputnik Brasil.
"Mas no que concerne ao setor empresarial, isso traz instabilidade e perdas [...] No entanto, além dos negócios existe a política", salientou Timofeev.
Apesar dos esforços, Washington e Pequim não têm a capacidade de serem completamente independentes tecnologicamente um do outro.
"Hoje isso não é possível. Tudo está muito entrelaçado", disse Yunusov. "A China atualmente não tem essa fortaleza, mas está tentando construir seu sistema de forma a não depender de tecnologia estrangeira."
Para Timofeev, é necessário fazer ajustes para que os países possam atingir certo nível de soberania tecnológica.
"No entanto, atualmente existe um alto nível de interdependência e cortar essas ligações é mais difícil do que se acreditava", acredita Timofeev.
Guerra Fria 2.0
Em 2019, a reforma da lei de controle de exportações dos EUA listou 14 setores tecnológicos sensíveis, em relação aos quais Washington deve impor restrições e mesmo bloquear a cooperação científica com outros países.
Dentre os setores listados estão a inteligência artificial, tecnologias de microprocessadores, análise de dados, vigilância, tecnologia quântica, logística, biotecnologia, robótica, entre outras.
De acordo com o diretor de pesquisa do Conselho Europeu de Relações Exteriores, Jeremy Shapiro, a política norte-americana de restrições em relação à China não deve mudar se Joe Biden vencer as eleições presidenciais de novembro.
"Não haverá nenhuma mudança fundamental, porque há um consenso bipartidário sobre a concorrência com a China. Biden [...] também utilizará seus meios econômicos para tentar ganhar essa competição", disse Shapiro durante o debate promovido pelo Clube Valdai.
O diretor do Comitê de Educação e Ciências do parlamento russo, Vyacheslav Nikonov, por sua vez, lembrou que os EUA não estão tão bem posicionados para a atual guerra fria com a China quanto estavam para o embate com a URSS.
"No início da Guerra Fria [do século XX], a URSS era um país destruído pela guerra. Hoje, a China é provavelmente a maior economia do mundo [...] Naquela época, o mundo inteiro devia aos EUA. Hoje, são os EUA que estão devendo para o mundo todo", notou Nikonov.
Apesar do combate tecnológico acirrado, Nikonov e Shapiro concordam que o confronto entre EUA e China não deve evoluir para a esfera militar.
"Estou otimista, não acho que os países tenham interesse em um conflito armado", concluiu Shapiro.
Especialistas de todo o mundo se reuniram nesta semana para a 17ª Conferência Anual do Clube de Discussões Valdai, celebrado na capital russa, Moscou. O evento contou com a participação por videoconferência do presidente da Rússia, Vladimir Putin, e do primeiro-ministro da Rússia, Mikhail Mishustin.