Em sua primeira semana na chefia da Casa Branca, Joe Biden já deu sinais sobre como será a sua política econômica: estímulo à economia interna, com repasses diretos de dinheiro à população, e proteção da indústria norte-americana da concorrência internacional.
Com muitos elementos de programas iniciados pelo ex-presidente Donald Trump, a administração democrata parece tentar se distanciar do credo neoliberal e do livre comércio.
Na segunda-feira (25), Biden assinou o plano Buy American, cujo objetivo é revitalizar a indústria dos EUA, garantindo que agências federais comprem exclusivamente produtos produzidos no país.
"Eu não compro nem por um segundo essa ideia de que a vitalidade da indústria norte-americana é coisa do passado", afirmou Biden. "A indústria norte-americana foi o arsenal da democracia na Segunda Guerra Mundial e deve ter papel como motor da prosperidade dos EUA hoje."
Alguns economistas questionaram o impacto real da medida, lembrando que o poder de compra do governo não é o suficiente para reconstruir a indústria do país.
No entanto, o plano é um indicativo claro dos rumos da política industrial e de comércio exterior de Biden.
Internamente, o presidente pressiona o Congresso para aprovar pacote de estímulo de US$ 1,9 trilhão (cerca de R$ 10 trilhões). Com os recursos, Biden quer dobrar o salário mínimo federal dos EUA, além de estender o acesso da população a benefícios, como o seguro-desemprego.
"Essas primeiras propostas de Biden vão fazer uma grande diferença [...] e apontam para um enfoque mais social", disse o economista e diretor-adjunto da Faculdade de Campinas (FACAMP), Daví Antunes, à Sputnik Brasil.
Apesar do "alívio imediato" que as medidas vão proporcionar, "o problema virá em um segundo momento", uma vez que o mercado de trabalho e a indústria nos EUA se encontram em "plena decadência".
Decadência industrial
De acordo com memorando da Casa Branca, revitalizar o setor industrial norte-americano é essencial para a criação de empregos no país.
"A economia americana tem uma produção industrial grande, mas muito dependente de importações", afirma Antunes. "Praticamente tudo é importado. Um [avião produzido pela empresa norte-americana] Boeing, por exemplo, tem peças de 70 países diferentes."
Essas importações têm papel importante no déficit da balança comercial dos EUA, que atingiu US$ 68 bilhões (cerca de R$ 369 bilhões) em novembro de 2020, o pior resultado em 14 anos.
Garantir que os EUA produzam mais tem sido um desafio para sucessivas administrações. O plano de Biden tenta reforçar a aplicação de muitos pontos da política America First, promovida pelo seu antecessor, Donald Trump.
Indústria chinesa
Outro ponto que parece muito com a abordagem de Trump é a política do governo Biden em relação à China. O país asiático ultrapassou os EUA em capacidade industrial já em 2010. Em 2018, a China respondia por 28% da produção industrial mundial, de acordo com dados das Nações Unidas.
"O grande movimento da globalização foi essa integração entre as economias dos EUA e da China", comenta Antunes. "A China se desenvolveu em cima disso [...], mas, para os EUA está sendo ruim, porque eles foram perdendo capacidade industrial, perdendo emprego e virando uma sociedade cada vez mais decadente."
No entanto, o apelo de Donald Trump para que empresas dos EUA operando na China retornassem ao país de origem não parece ter surtido efeito.
"É muito difícil trazer as empresas de volta, afinal elas estão lucrando com os chineses. São elas que são a favor da liberalização e colocam a agenda do livre comércio", disse Antunes.
Segundo ele, os EUA também carecem de mão de obra especializada para operar no setor industrial de ponta.
Falta de emprego
A política industrial de Biden tem como principal objetivo atacar o maior problema da economia dos EUA hoje: a falta de empregos.
"A grande verdade e o grande drama dos EUA hoje é que eles são um país muito rico, muito desigual [...], mas com muito pouco emprego", resumiu Antunes.
O desemprego "cindiu a sociedade", dividindo-a entre "os vencedores que levam tudo e dezenas de milhões de perdedores que tem que se virar".
"O peso do desalento no mercado de trabalho dos EUA é muito forte", notou Antunes. "As pessoas desistiram de procurar emprego e a taxa de ocupação está nos níveis da década de 1970."
Além disso, entre 10% e 30% da população estaria ocupada em subempregos, como os oferecidos por aplicativos de entrega e de transportes, "uma inserção precaríssima no mercado de trabalho".
"Para resolver isso seria necessário mecanismos como uma renda universal mais sistemática [...] e pensar em redução da jornada de trabalho", acredita o economista.
Liberalismo econômico em xeque?
À primeira vista, as medidas adotadas por Biden parecem confirmar a volta da interferência do Estado na economia norte-americana e o retrocesso do neoliberalismo.
"Mas o neoliberalismo é um movimento muito mais profundo [...] bancado pelas empresas e pelos bancos", lembra Antunes.
Para ele, "a pressão das empresas em relação à questão do livre comércio vai continuar muito forte".
No entanto, "ela terá que enfrentar interesses mais graves, que são os interesses de potência dos EUA", acredita o economista.
"Precisava fazer planejamento para sair disso? Claro. Os EUA enfrentaram um apagão a pouco tempo atrás, porque privatizaram as empresas de energia. Então se não tiver planejamento é muito difícil."
Porém, "um dos lados do neoliberalismo é exercer uma força ideológica contra o planejamento".
"Biden tem um grande desafio: ou [sua administração] fará uma virada muito grande, ou será uma catástrofe", sentencia Antunes.
Para o economista, caso Biden "adote medidas mais avançadas, como a renda universal, ele poderá ser um dos grandes presidentes da história norte-americana".
"Agora, se Biden manter a linha neoliberal e não oferecer uma alternativa para o país [...], ele será engolido pelas tensões sociais", acredita o economista.
"Não vou dizer que chegaria a uma guerra civil, mas os EUA estão realmente em pé de guerra", concluiu Antunes.