Um enfermeiro paulista, com mais de 15 anos de experiência no Brasil, está em Lisboa desde 2019 sem conseguir exercer sua profissão. Ele conta que esteve em Portugal pela primeira vez, de férias, em 2018, para tentar fazer o processo de equivalência de grau exigido pela Ordem dos Enfermeiros. No entanto, seu pedido foi negado devido à carga horária exigida nas universidades portuguesas. Ele pede anonimato com medo de retaliações da ordem.
Desde o ano passado, está à procura de uma instituição de ensino superior que tenha grade curricular similar à dele. Com a pandemia de COVID-19, o processo burocrático tornou-se ainda mais lento. Sem autorização para exercer sua profissão legalmente, ele está trabalhando como copeiro em um restaurante de Lisboa.
Questionado por Sputnik Brasil como vê a situação de Portugal, com carência de profissionais de saúde, já que mais de 10 mil estão infectados com o SARS-CoV-2, enquanto muitos enfermeiros brasileiros poderiam estar ajudando no combate à pandemia, ele desabafa.
"É muito triste. A Ordem dos Enfermeiros tem se comportado como uma classe corporativista, que dificulta e cria barreiras burocráticas e empecilhos incompatíveis com a emergência sanitária que é a COVID-19. Temos, em solo português, dezenas de enfermeiros formados no Brasil, qualificados e experientes, que estão impedidos de exercer a profissão pelo exagero das exigências de equivalência. Esse seria o momento de flexibilizar essas regras para tirar Portugal dessa crise", avalia.
No último domingo (31) entrou em vigor um decreto presidencial que flexibiliza as regras para médicos e enfermeiros estrangeiros trabalharem no Sistema Nacional de Saúde (SNS) devido à escassez de profissionais portugueses para o combate à COVID-19. Porém, brasileiros continuam enfrentando obstáculos. Segundo a Ordem dos Enfermeiros, há 1.968 estrangeiros a exercer a profissão, dos quais 309 são brasileiros.
No entanto, a entidade não respondeu quantos brasileiros tiveram o pedido de carta profissional recusado em 2020 nem as queixas de corporativismo e xenofobia que dificultam a autorização do exercício da profissão em Portugal. Sputnik Brasil também solicitou, por dois dias, o posicionamento da ordem sobre o decreto presidencial, mas não obteve respostas até o fechamento desta reportagem.
De acordo com o decreto, fica previsto o reforço de recursos humanos em unidades de saúde, permitindo-se que os estabelecimentos do SNS possam contratar, excepcionalmente até o limite de um ano, titulares de graus acadêmicos conferidos por instituições de ensino superior estrangeiras nas áreas da medicina e da enfermagem.
Em enfermagem, o nível deve ser idêntico aos dos graus de licenciado conferidos pelas instituições de ensino superior portuguesas, quando estes comprovem uma das seguintes condições: ter concluído um ciclo de estudos com, pelo menos, 3.600 horas de ensino, das quais 1.800 horas em ensino clínico, ou deter mais que cinco anos de experiência profissional na área clínica.
Ainda segundo o decreto, aos estudantes inscritos em ciclos de estudo da área da enfermagem que já sejam titulares de grau acadêmico estrangeiro pode ser creditada a totalidade da formação e da experiência profissional devidamente comprovada. Mas, na prática, a teoria é diferente. Enfermeiros formados no Brasil e com mais do que cinco anos de experiência esbarram na lentidão da burocracia, no corporativismo e no preconceito para conseguir atuar na área.
Faculdade de Coimbra anula equivalências e manda enfermeiros brasileiros recomeçarem do zero
Na Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC), por exemplo, pelo menos dez enfermeiros brasileiros tiveram anulados seus processos de reconhecimento específico de grau de ensino superior. Eles já haviam sido aprovados por um júri, por meses cursaram disciplinas de ensino clínico para complementar as horas exigidas pela instituição, mas, em setembro de 2020, foram informados de que tudo havia sido em vão e teriam que recomeçar o processo.
Sputnik Brasil teve acesso ao despacho em que a presidente da ESEnfC, Aida Maria de Oliveira Cruz Mendes, declara a nulidade de todas as decisões de atribuição de reconhecimento específico de um grau de ensino superior emitidas pelo júri nomeado pela instituição. O documento, de outubro de 2020, mostra que a ESEnfC já sabia da anulação pela Inspeção Geral da Educação e Ciência (IGEC) desde abril do ano passado, pelo menos. No entanto, comunicou aos enfermeiros brasileiros apenas cinco meses depois.
Desde 19 de janeiro, este correspondente em Lisboa tem solicitado um posicionamento da ESEnfC. Ao longo desta semana também questionou Aida Mendes, por e-mail, se vai cumprir o decreto presidencial e aplicá-lo aos enfermeiros brasileiros que tiveram seus processos anulados, mas ela não respondeu. Sputnik Brasil teve acesso também à gravação de uma reunião, de setembro de 2020, em que a presidente da instituição de Coimbra informou aos brasileiros que eles teriam que recomeçar o processo.
Em mais de duas horas de encontro virtual, Aida Mendes não pediu desculpas pelo erro da ESEnfC em aceitar a matrícula dos enfermeiros brasileiros mesmo sabendo que a legislação havia mudado em 2018, tampouco se desculpou pela demora de cinco meses em avisá-los que essa falha havia implicado a nulidade dos processos. Apenas propôs que eles se inscrevessem como estudantes internacionais ou se candidatassem às vagas especiais para titulares de outras licenciaturas, passando pelo crivo de um novo júri. Sem dar garantias nem prazos.
"A IGEC diz que esses atos são nulos. A ESEnfC foi intimada a anular as decisões do júri. Este é um processo que tem que ser avaliado, a partir de agora, do zero. Garantia não tenho. O júri é supremo. Posso sensibilizá-lo, mas não posso garantir. Sensibilizei o júri para dar prioridade a esses processos, mas é moroso. Não posso dizer que seja um mês, não tenho uma resposta concreta para dar", disse Aida Mendes na reunião.
Com doutorado em enfermagem e professora concursada de uma das principais universidades federais do Brasil, uma mineira que teve seu processo de reconhecimento de grau anulado e recomeçou do zero como aluna da instituição, tenta obter informações desde a publicação do decreto, mas sem sucesso. Ela também pediu para ter a identidade preservada com receio de ser prejudicada novamente pela ESEnfC.
"Enviei um e-mail à ESEnfC para saber como proceder. Até o momento não responderam. Imagino que vão, mais uma vez, deixar o assunto de lado até passar o decreto. A doutora Aida já nem me responde mais. Ignora meus e-mails. Hoje, enviei um novo e-mail ao setor acadêmico a cobrar uma resposta. É uma luta difícil mesmo", lamenta.
Licenciada do cargo na universidade brasileira, ela conseguiu a validação dos diplomas de mestrado e doutoramento logo que chegou a Portugal, em 2018. Ou seja, é reconhecida como mestre e doutora, mas não como enfermeira graduada. Tentou se inscrever na Ordem dos Enfermeiros à luz do Tratado de Amizade entre Brasil e Portugal (Acordo de Porto Seguro), mas teve o processo indeferido com a justificativa de que teria que fazer a equivalência de grau.
Iniciou o processo na ESEnfC em 2019, pagou mais de € 1.600 (R$ 10.304) entre matrícula e mensalidades, começou as aulas nas disciplinas definidas pelo júri, que foram interrompidas na primeira onda de COVID-19, quando faltava apenas um ensino clínico para concluir o proposto pela instituição a fim de ter o reconhecimento como enfermeira. Em setembro de 2020, foi surpreendida pela informação de que o processo de equivalência fora cancelado, visto que a Ordem dos Enfermeiros embargou os procedimentos adotados pela ESEnfC.
"Perdi tudo e ingressei como estudante regular do curso de licenciatura de enfermagem, tendo que voltar para o 1º ano e buscar algumas unidades curriculares creditadas. Estou cursando as unidades faltantes para obter o título daqui. A Ordem dos Enfermeiros criou mecanismos legais que tornaram impossível o reconhecimento do diploma brasileiro", explica à Sputnik Brasil.
Questionada por que fez essa opção de ir para Portugal e ter que recomeçar tudo do zero, ela ainda busca uma resposta, mas acredita que conseguirá trabalhar na carreira que a consagrou no Brasil.
"Faz dois anos que me pergunto isso. A questão é que não é só a satisfação profissional que conta para uma qualidade de vida. Eu ainda tenho esperanças de atuar em minha área aqui e continuo a lutar por isto", acrescenta.
Peruana processa faculdade e diz que nunca viu tanto ódio contra brasileiros
Única entrevistada a não pedir anonimato, a peruana Zenaida Chani também teve o processo de reconhecimento de grau anulado pela ESEnfC, mas não aceitou recomeçar do zero e está processando a instituição por danos patrimoniais e morais. Formada na Bolívia, fez a equivalência para trabalhar no Brasil por meio de uma prova, trabalhou por cinco anos em dois hospitais de Cuiabá, inclusive no setor pós-operatório de neurocirurgia.
"O que fizeram na ESEnfC não tem nome. E ainda jogaram a responsabilidade para cima dos alunos. Nada vai devolver o dinheiro que gastamos e os transtornos causados nesses dois anos. Foi uma palhaçada. Nunca vi tanta irresponsabilidade de uma instituição", critica Zenaida.
Com 15 anos de experiência e casada com um brasileiro, ela ainda precisaria passar por uma prova de idioma, pois não tem a língua portuguesa como materna, apesar de a comunicação com a Sputnik Brasil, tanto oral como escrita, ser perfeitamente compreensível. Essa prova foi dispensada aos 26 profissionais da saúde alemães que chegaram esta semana a Lisboa para reforçar o atendimento no SNS. Segundo Zenaida, há um preconceito especial contra brasileiros, sentido também na ESEnfC.
"Eles têm um ódio dos brasileiros! Nem no Brasil ou em lugar nenhum vi tanto racismo e ódio. Quando entramos na ESEnfC, nas aulas de integração profissional, os alunos portugueses não queriam fazer grupo com a gente. Como o meu sotaque não é de Portugal, a professora falou que meu trabalho estava abrasileirado, com um sarcasmo, diante de todo mundo por videochamada. Você sente na pele a raiva que têm contra os brasileiros, o que não acontece com outros estrangeiros, como de Cabo Verde e Holanda", compara.
Uma outra brasileira, que também pede anonimato, confirma os relatos de suas colegas da ESEnfC. Acostumada a cuidar de doentes e pacientes cirúrgicos em hospitais no Brasil, agora ela está lidando com outros tipos de operação e máquinas em Portugal: trabalha em uma fábrica, já que não consegue atuar na área da saúde.
Em 2019, ela deu entrada para reconhecimento específico de grau, a ESEnfC a chamou para fazer a matrícula em janeiro de 2020, pois foi indicada pelo júri a fazer duas matérias teóricas e um estágio, somando um total de dez semanas. Porém, após finalizar a teoria em março, o estágio foi suspenso em abril, devido à pandemia. No entanto, ela diz que aos alunos portugueses foi proposto outro tipo de avaliação para substituir o estágio.
"A nós, [estrangeiros] da equivalência, pediram para aguardar. Em setembro, já estando todos preparados para retornar às aulas, a faculdade nos informou que o nosso processo de equivalência foi feito de forma errada e que deveríamos fazer tudo de novo. Já passamos por júri novamente e estamos fazendo as matérias que nos foram propostas em aulas on-line", conta à Sputnik Brasil.