Nesta terça-feira (16), entra em vigor a decisão do presidente norte-americano, Joe Biden, de retirar a classificação do grupo iemenita Ansarallah, também conhecido como movimento houthi, como organização terrorista internacional.
A decisão anula decreto assinado pelo ex-presidente Donald Trump e aponta para uma nova estratégia norte-americana em relação ao conflito no Iêmen.
Tomada duas semanas antes do fim de seu mandato, a medida de Trump foi duramente criticada pelas Nações Unidas, por dificultar o fornecimento de ajuda humanitária a milhões de iemenitas.
Iniciado em 2015 como uma guerra civil entre o movimento houthi e o governo central liderado por Ali Abdullah Saleh, o conflito se internacionalizou com a intervenção de coalisão de países árabes liderada pela Arábia Saudita em favor do governo.
Passados mais de cinco anos, os houthis se fortaleceram e passaram a controlar quase 80% do território iemenita.
Ao anunciar a reversão da decisão de Trump, o novo secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, fez um aceno à liderança houthi.
"Nós ouvimos os apelos das Nações Unidas, grupos humanitários, membros de ambos os partidos do Congresso, dentre outros, de que a designação poderia ter um impacto devastador no acesso do Iêmen a produtos básicos, como comida e combustível", disse Blinken.
"Ao focar no alívio da situação humanitária no Iêmen, esperamos que as partes iemenitas também foquem no estabelecimento de diálogo", sugeriu o secretário de Estado.
De acordo com o pesquisador do Instituto de Pesquisa sobre Oriente Médio e Ásia da Academia de Ciências da Rússia, Dmitry Grafov, a "administração Biden compreende muito bem que não há solução militar para o conflito no Iêmen".
"Acredito que os EUA podem oferecer algum tipo de acordo de paz aos houthis, na condição de que eles renunciem à cooperação com o Irã", disse Grafov à Sputnik Brasil. "Essa é a questão central para os EUA."
O Irã é acusado de fornecer ajuda material e organizacional para o movimento houthi, garantindo seu sucesso na batalha contra a coalisão saudita.
Dentre outras condições impostas, estaria o "fim das hostilidades abertas contra os EUA e membros da coalisão liderada pela Arábia Saudita".
"Apesar de que, atualmente, é difícil falar em uma coalisão", considerou Grafov. "Hoje quem luta contra os houthis é basicamente a Arábia Saudita."
Em 2019, os Emirados Árabes Unidos (EAU), considerados uns dos membros mais ativos da coalisão, que também inclui países como Bahrein, Kuwait e Jordânia, se retiraram da guerra.
"Para a Arábia Saudita, algumas demandas mínimas já seriam aceitáveis, por exemplo, que os houthis paralisem tentativas de ocupar novos territórios, deixem de mobilizar mísseis de cruzeiro e drones [...] em centros urbanos iemenitas perto da fronteira com a Arábia Saudita", acredita Grafov.
Além disso, a "Arábia Saudita gostaria de ver no governo do Iêmen algum rosto familiar, de preferência sunita".
O especialista lembra, no entanto, que o reino não negocia em posição de força com os EUA quando o assunto é Iêmen.
"Como em cinco anos a Arábia Saudita não conseguiu vencer seus inimigos no campo de batalha, talvez precise aceitar as condições [de paz] propostas pelos EUA", disse Grafov.
Aliança EUA-Arábia Saudita
A decisão norte-americana de retirar o reconhecimento houthi como organização terrorista foi interpretada por muitos como um sinal de Biden à Arábia Saudita.
O presidente democrata anunciou que os EUA suspenderiam alguns contratos de venda de armas para o reino.
Entre os anos de 2015 e 2019, a Arábia Saudita foi a maior importadora mundial de armas, de acordo com dados do Instituto Internacional de Pesquisa sobre a Paz de Estocolmo (SIPRI, na sigla em inglês). Os EUA forneceram três quartos do volume total de armamentos à Arábia Saudita, seguida por Reino Unido, França, Canadá e Itália.
A principal medida dos EUA, no entanto, foi "suspender contratos de fornecimento de caças F-35 para os EAU e a Arábia Saudita. Estranho que esse tipo de armamento moderno dificilmente seria usado contra os houthis no Iêmen", notou Grafov.
Para ele, a tentativa de suspender ou adiar alguns contratos pode estar ligada a interesses corporativos.
"Durante visita à Arábia Saudita na qual Trump selou diversos contratos de fornecimento de armas ele [Trump] nomeou as principais empresas do complexo industrial militar norte-americano participantes", lembrou Grafov. "Essas eram justamente as empresas que tradicionalmente patrocinam candidaturas do Partido Republicano."
Por outro lado, o fornecimento de caças F-35 aos Emirados Árabes Unidos (EAU) havia sido acordado como parte da negociação sobre normalização das relações entre EAU e Israel.
Essa concessão feita ao emirado havia sido criticada tanto em Washington quanto em Tel Aviv, e aparentemente foi revertida pela administração Biden sob a justificativa de encerrar a guerra no Iêmen.
No caso saudita, Biden também suspendeu contrato assinado na era Trump de US$ 478 milhões (cerca de R$ 2 bilhões) para fornecimento de mísseis guiados.
Apesar disso, "os EUA não devem fazer mudanças substanciais em sua relação com a Arábia Saudita", acredita Grafov. "O reino continuará sendo um aliado dos EUA."
Para ele, os países teriam uma parceria estratégica sólida, que eventualmente passa por desafios na área de direitos humanos.
"O líder saudita [Mohammed bin] Salman, às vezes, toma algumas decisões severas para afastar seus adversários políticos, e isso incomoda os EUA", disse o especialista.
Declarações do novo secretário de Estado, Antony Blinken, sugerem que os EUA devem aumentar a pressão sobre seu parceiro saudita nessa seara.
Em um possível sinal de conciliação, Riad libertou a ativista pelo direito das mulheres Loujain al-Hathloul, no dia 10 de fevereiro.
Nesta terça-feira (16), os EUA retiraram oficialmente decisão que classificava o grupo Ansarallah, conhecido como movimento houthi, como organização terrorista internacional. Três líderes do grupo, no entanto, seguem sob sanções norte-americanas.
Mais de 112 mil pessoas já perderam suas vidas durante o conflito do Iêmen, apontam as Nações Unidas. De acordo com a organização, o país vive a pior crise humanitária da atualidade, com um em cada quatro habitantes diretamente dependentes de ajuda internacional para sobreviver.