Talvez fosse a ausência de uma grande descoberta, um hiato ao qual a ciência brasileira não está acostumada. De qualquer sorte, o fato é que a iniciativa do Projeto S, do Instituto Butantan em parceria com o governo do estado de São Paulo, encantou a comunidade científica no Brasil.
Pioneiro no mundo, o estudo tem como objetivo avaliar, em cerca de três meses, o efeito da vacinação sobre o curso da pandemia. Se tiver sucesso, a pequena cidade de Serrana, em São Paulo, poderá servir como base de dados para pesquisadores no mundo inteiro.
Parte da população deste município terá o privilégio de servir como cobaia desta pesquisa, e receberá cerca de 60 mil doses da CoronaVac.
O Butantan inicia hoje estudo inédito em Serrana. Depois de reconhecidas a eficácia e a segurança da vacina, o estudo vai imunizar 30 mil pessoas contra Covid-19 e avaliar a redução do contágio e ocupação de leitos hospitalares. Dia histórico para a ciência mundial.
— Instituto Butantan (@butantanoficial) February 17, 2021
Para compreender a importância e o significado deste estudo para a comunidade científica internacional, a Sputnik Brasil conversou com uma das responsáveis pelo projeto, Natasha Nicos Ferreira, do Instituto Butantan, e o pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, Flávio da Fonseca.
Eles comentaram a importância da iniciativa e apontaram, a partir das descobertas do Projeto S, as razões que podem levar o Brasil a retomar um papel de vanguarda na pesquisa sobre vírus e doenças.
Projeto S: razão de orgulho
Conforme descreve o site do Instituto Butantan, "o estudo escalonado por conglomerados vai avaliar a eficiência da vacinação no que se refere à transmissão do vírus, redução de carga do sistema de saúde, bem como outros efeitos indiretos da vacinação na economia, na circulação de pessoas e na aceitação da vacinação, por exemplo".
Para Natasha Ferreira, o Projeto S será algo "para o resto de nossas vidas". Para ela, "a grande importância é que ele ultrapassa o limite até da COVID-19. A ideia de como uma vacina funciona em uma população inteira é algo que vai ajudar em planos futuros, para caso tenhamos outras pandemias, ou outras doenças que também sejam tratadas por vacina. Então, é uma resposta que o mundo inteiro espera".
Ela ainda destaca que "nunca se teve este cenário de conseguir desenvolver uma vacina rápida para uma doença que está fora de controle. Na verdade, [o Projeto S] virou um modelo que será utilizado futuramente como base para análises estatísticas e epidemiológicas de diversas outras doenças e situações".
Para o virologista da Universidade Federal de Minas Gerais, Flávio da Fonseca, há "dois aspectos importantes" no Projeto S, que começou hoje (17).
O primeiro, explica ele, é o aspecto prático, interno. "Vamos poder fazer um modelo que pode ser utilizado em um contexto global e nacional, principalmente quando você vai expandir e aplicar esse modelo. O segundo aspecto é que a ciência brasileira estava particularmente ferida na sua projeção dentro desta pandemia".
No entendimento do especialista, "o Brasil não ficou com uma imagem boa diante da comunidade internacional [durante a pandemia de COVID-19]. Porque nossas lideranças, primeiro, nunca levaram a pandemia muito a sério, e as intervenções que foram feitas foram incorretas. A capacidade do governo em negociar a colocação do Brasil dentro desta demanda global por vacina também foi desastrada".
"E de repente um estudo importante, saindo daqui de dentro, e vai ser um modelo importante, pode trazer uma luz diferente principalmente para o profissional da ciência e para capacidade brasileira de dar respostas científicas importantes. A gente foi tão bem na crise do Zika, o Brasil foi modelo mundial no estudo da Zika, e isso tudo foi por água abaixo diante de uma atuação desastrada neste último ano da pandemia", disse Da Fonseca.
Os afortunados em Serrana, em São Paulo
Segundo o Butantan, a cidade do Projeto S foi escolhida com base em três critérios: precisaria ser um município pequeno; possuir taxa de infecção elevada para que o efeito de vacinação fosse avaliado mais rapidamente; e estar próximo ou conter um centro de pesquisa. Serrana foi escolhida por reunir os três fatores e ter números elevados da COVID-19.
Em uma rede social, o governador João Dória, que acompanhou o primeiro dia de vacinação, explicou a escolha da cidade.
Confira vídeo com mais detalhes sobre o estudo com a vacina do Butantan em Serrana, no interior de SP. Mais uma contribuição do Instituto Butantan para a ciência mundial e importante contribuição para a vida. Viva a vacina! pic.twitter.com/Y47aqylzD2
— João Doria (@jdoriajr) February 17, 2021
No entendimento de Natasha Ferreira, "a pesquisa na fase três [dos testes clínicos] pega uma quantidade de pessoas bem menor e a gente já usa esses dados para reproduzir para uma população inteira. Sobre os 30 mil [participantes do projeto], a grande ideia deles é que como está todo mundo em um ambiente físico mais específico, eles têm interação entre eles por estarem na mesma cidade. Eles reproduzem uma situação de vida real mesmo. Então, é muito plausível a gente conseguir ampliar isso para milhões de pessoas".
A importância do Projeto S
Natasha Ferreira, uma das idealizadoras da iniciativa do Instituto Butantan, avalia que "a grande ideia é ver o real impacto que tem conseguir vacinar uma população inteira, inclusive os adultos jovens".
Segundo ela, "o plano nacional vai por faixas etárias, então, até a gente ter uma ideia do real impacto que isso vai ter em uma população inteira, demoraria muito. Talvez até o fim do ano a gente ainda tenha adultos para serem vacinados. O grande projeto é ver o real impacto que tem e para pressionar em relação à quantidade de vacinas que serão oferecidas, para poder mostrar se isso ajuda a voltar a economia, se as pessoas conseguem voltar a estudar. Para ver o quanto a vida pode voltar ao normal".
A imunização da população serranense poderá ter efeito indireto de proteção em quem não puder, por alguma razão, ser vacinado. Esse é um dos efeitos que o Projeto S pretende estudar. Flávio da Fonseca explicou à Sputnik Brasil como funciona este conceito.
"Os parâmetros que a gente tem, que foram definidos na fase três das vacinas, respondem muitas perguntas, mas deixam muitas outras em aberto. Eu acho que a pergunta que esse estudo do Butantan pretende fazer é trazer uma informação muito importante. A primeira e mais óbvia é em relação não à eficácia para se proteger da doença em si, isso foi mostrado no estudo de fase três, mas em relação à transmissibilidade do vírus", afirmou.
Ele aponta que não é certo que uma pessoa vacinada evite de passar o vírus para uma outra pessoa. "Essa pergunta ficou sem reposta no estudo de fase três da CoronaVac. Então, isso vai ser importante. Outro grupo de informações que vai sair de um estudo desta magnitude é exatamente o impacto da vacinação com esse grau de eficácia que essa vacina tem na formação de uma imunidade coletiva em grupo conhecido".
Pesquisa vs imunização: dilema das poucas vacinas
A questão da vacinação no Brasil é delicada. Com o país atrasado neste quesito, questionamos Flávio da Fonseca se o uso de 30 mil doses em uma única cidade pode ser visto como política eleitoral.
O professor acredita que não, e defende a pesquisa e os investimentos feitos no Projeto S.
"Esse é o ponto chave para se ter sucesso no programa nacional de imunização para a COVID-19. Um estudo desta natureza tem a capacidade de permitir prover ações de planejamento com base em dados empíricos, em ciência. Se você pensar em gastar 30 mil doses agora, fora do programa de prioridades, vale a pena para a gente ter dado? Eu acho que vale, porque isso pode gerar um cojnnto de dados que vão ser importantes para tomar decisões estratégicas que podem vir a poupar doses e recursos no futuro. E vidas, claro, que é o mais importante", concluiu.