Apesar disso, 62% não tomaram nenhuma dose, e o percentual é ainda maior entre os Estados da Amazônia: 71%. Lideranças apontam as fake news como uma das causas do baixo índice de vacinação. Na quinta-feira (18), o governo brasileiro oficiou no Supremo Tribunal Federal (STF) a informação de que foi ampliado o número de populações indígenas a serem contempladas com a cobertura vacinal.
Mas qual o real efeito que as fake news têm sobre as populações indígenas? Para discutir o assunto a Sputnik Brasil conversou com Roberto Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário–Sul (Cimi-Sul).
Ele avalia que o problema de origem é a negação por parte do Estado — através de seus governantes e em especial do presidente da República, de seu ministro da Saúde e de toda a equipe de governo — de impor à sociedade como um todo, e não só aos povos indígenas, uma sensação de insegurança diante da vacina.
"O governo federal é negacionista e essa sua postura é que vem efetivamente comprometendo todo o processo de imunização no país. Temos que analisar primeiramente e levar em conta essa concepção do Governo brasileiro de pôr em dúvida a eficácia da vacina, propondo que as pessoas não se vacinassem e fazendo a disseminação de mentiras acerca das consequências desse processo de vacinação", declarou de forma veemente o especialista.
Segundo ele, com o discurso das autoridades, começou em âmbito nacional a serem desencadeadas as fake news. Elas foram sendo disseminadas paulatinamente, atingindo todas as camadas sociais, mas de modo especial atingindo duramente as populações mais pobres, mais vulneráveis, aquelas que mais necessitam da cobertura vacinal.
"As mentiras acerca da vacina foram sendo propagadas com mensagens que previam para os indígenas a transformação do seu modo de vida. Então, em algumas mensagens, se podia identificar a informação de que aqueles que fossem vacinados teriam uma vida muito curta, uma vida curta e com muito adoecimento, que levaria à morte prematura. Uma outra mensagem é de que aquele que fosse vacinado perderia a fertilidade e, mais que isso, em determinadas mensagens se dizia que as pessoas mudariam inclusive de sexo", explicou Liebgott.
Outra linha de informação é que eles se tornariam animais, ponto em que o indigenista atenta para o fato de que na cosmovisão de muitos povos indígenas isso é perfeitamente possível.
Como as fake news chegam às aldeias indígenas
O especialista disse que as notícias falsas chegam às comunidades indígenas especialmente através do WhatsApp, onde há acesso à Internet, ou através do Facebook e de outras redes sociais.
"Mas talvez o método mais grave tenha sido através de meios de comunicação como o rádio, onde essa contrainformação se deu especialmente na região amazônica, onde as pessoas não têm acesso à Internet, mas ouvem muito o rádio. Especialmente no Pará, um povo vítima desse processo foi o munduruku", continuou Liebgott.
Outra fonte de contrainformação foram as mensagens transmitidas via igrejas neopentecostais, as mais fundamentalistas, segundo o especialista, as quais trabalharam também no sentido de realizar nas comunidades a pregação contra a vacina, "levando a mentira sobre a eficácia, sobre seus impactos na vida das pessoas, especialmente sobre o adoecimento e a morte, comprometendo então seriamente a possibilidade de uma campanha vacinal mais abrangente".
Liebgott também destaca a falta de uma orientação pedagógica por parte dos órgãos responsáveis pela vacinação, de levar a boa informação para as comunidades.
"Diante de um contexto de tanta desinformação, de tantas mentiras, havia a necessidade de que as equipes de saúde se preparassem para bem informar as comunidades, e isso a gente percebeu que foi muito negligenciado a partir dos contatos que nós estabelecemos com as comunidades. As equipes simplesmente chegavam e já informavam que vacinariam as pessoas, causando a negativa por parte dos membros das tribos”, explicou o coordenador do Cimi-Sul.
Como o Cimi atua para combater as fake news
Segundo Liebgott, o Cimi vem atuando no sentido de levar a informação adequada para as comunidades acerca da necessidade de que todos sejam vacinados. Seus missionários e missionárias têm o compromisso de informar adequadamente as pessoas, as famílias, as comunidades acerca da importância da vacinação, "diante de um problema grave que tem uma origem não do Brasil, mas que veio para o Brasil, assolando a vida de todo mundo".
"Uma das alternativas para enfrentamento desta pandemia é uma aceitação à proposta de vacinação, mas isso precisa ser feito dentro de um processo de diálogo adequado, em muitas realidades com intérpretes indígenas. Às vezes, a nossa linguagem, o português, para ser transmitido para as comunidades precisa de um intérprete, precisa daquele que vai se comunicar de forma adequada para que a informação chegue de forma segura e também adequada", avaliou Liebgott.
Ainda deve ser levado em consideração que os povos indígenas têm também seus modos e formas de lidar com a saúde e com a doença, e eles tem os seus médicos tradicionais, que são os pajés, os líderes religiosos, aqueles que no âmbito de seu povo são especialistas no tratamento de doenças. Essas pessoas também precisam ser adequadamente informadas, de acordo com a avaliação do indigenista.
"Na campanha de vacinação você precisa conjugar o saber tradicional com a nossa medicina, no sentido de que um complementa o outro. Nossos missionários e missionárias têm essa obrigação, de fazer essa reflexão, de estabelecer esse diálogo, no sentido do respeito ao modo de ser de cada povo e de suas formas tradicionais de lidar com a saúde e com a doença", explicou.
Consequências da baixa taxa de vacinação nas populações indígenas
Para o Cimi, o fato de não haver uma imunização completa, ou seja, que as pessoas dentro das priorizações sejam devidamente assistidas e devidamente vacinadas, pode comprometer o futuro de um povo, pode comprometer a existência de uma comunidade.
"A nossa preocupação é que, retomando esse vício de origem, os governantes propagam a desinformação, colocam dúvida acerca da eficácia da vacina, dentro de uma lógica de política ou de antipolítica que promove, em vez da ação em benefício do povo, a desconstrução, a destruição, e aquilo que nós chamamos de genocídio", finalizou o indigenista.