Na segunda-feira (29), o governo do presidente dos EUA, Joe Biden, pressionou publicamente o Brasil pelo combate ao desmatamento ilegal. Por meio do Departamento de Estado, a Casa Branca exige do Brasil o cumprimento do compromisso do país pelo fim do desmatamento ilegal até 2030, além de maior fiscalização e punição dos responsáveis. O Brasil assumiu a meta ao assinar o Acordo de Paris.
Conforme publicou o jornal Folha de São Paulo, o governo norte-americano afirma que não tolerará a destruição das florestas brasileiras em meio ao avanço do aquecimento global. Ainda segundo a publicação, o governo Biden espera que o Brasil apresente um projeto detalhando ações para cessar o desmatamento na Cúpula dos Líderes sobre o Clima, que está marcada para o mês que vem.
Diferente de seu antecessor, o ex-presidente Donald Trump, desde a campanha Biden faz promessas de ações concretas relacionadas ao combate da crise climática em meio ao aquecimento global. Entre suas primeiras ações como presidente, Biden reinseriu os EUA no Acordo de Paris, abandonado por Trump. Ainda na campanha, Biden também citou a possibilidade de criação de um fundo internacional para financiar a proteção da Amazônia.
A professora Helena Margarido Moreira, pesquisadora em Relações Internacionais na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, lembra que o atual governo brasileiro costuma reagir aos questionamentos internacionais com um discurso de defesa da soberania nacional. Segundo a professora, porém, esse discurso não tem mais espaço e busca principalmente mobilizar o nacionalismo em suas bases.
"Esse discurso da defesa da soberania me parece antigo, ultrapassado. Era um discurso que fazia mais sentido lá na década de 1970 quando começaram as discussões internacionais sobre questões ambientais e uma percepção de que as questões ambientais são transfronteiriças. Hoje, eu não acho que existe essa ameaça sobre a soberania do Brasil, isso me parece mais um discurso ideológico para apelar para um discurso mais nacionalista do que uma ameaça de fato", afirma a pesquisadora em entrevista à Sputnik Brasil.
Moreira avalia que não há riscos de intervenções internacionais no Brasil em relação ao clima, mas sim uma crescente pressão para que o país volte a participar de forma ativa da agenda ambiental junto às outras nações.
"O que existe sim é uma pressão internacional sobre o Brasil muito mais calcada em financiamento, nos interesses privados, inclusive, de, enfim, entidades domésticas de grandes potências como os EUA, os países da Europa e etc. E uma necessidade, obviamente, de contar com o Brasil, que é um ator importante no combate às mudanças climáticas", aponta.
Nesse sentido, a professora explica que o aumento das pressões sobre o Brasil está diretamente ligado à mudança de governo nos EUA, ou seja, com a entrada de Biden no poder. Mas, apesar da importância da agenda ambiental na política externa do novo governo norte-americano, ela afirma que a agenda ambiental do democrata ainda não está clara e que suas intenções devem ser conhecidas justamente com a aproximação da Cúpula dos Líderes sobre o Clima, em abril.
Brasil adota postura que prejudica diálogo internacional sobre o clima
No Brasil, segundo a professora, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem se posicionado desde o início do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no sentido de demandar financiamento internacional para o Brasil preservar suas florestas, mas sem oferecer um plano concreto para tal.
"O financiamento que os governos brasileiros tiveram até agora para manter a floresta em pé - e o Fundo Amazônia é um exemplo disso - sempre se basearam em resultados. Então, o Brasil estabelece uma política de combate [ao desmatamento] na Amazônia, mostra resultados, ou seja, redução do desmatamento, e tem acesso aos financiamentos. E o Salles mudou muito essa postura desde o início do governo Bolsonaro", explica.
A pesquisadora aponta que o atual ministro do Meio Ambiente tem isolado outros atores domésticos importantes na política ambiental, como o Ministério das Relações Exteriores, que se ocupava da participação do Brasil nas negociações climáticas internacionais, o Ministério da Economia e o Ministério da Ciência Tecnologia e Inovações.
"Salles adotou uma postura muito de concentrar os poderes em si mesmo, no Ministério do Meio Ambiente, nessa posição de que o Brasil quer financiamento, quer o dinheiro, para daí, depois, comprovar, reduzir o desmatamento. Isso tem a ver com o comprometimento da pasta com os setores mais arcaicos do agronegócio brasileiro", aponta Moreira, acrescentando que essa postura deve prejudicar financiamentos externos e gerar problemas para as exportações.
EUA buscam retomar liderança global e podem usar sanções contra o Brasil
A pesquisadora Helena Margarido Moreira lembra que Joe Biden assumiu a postura de enfrentamento contra a crise climática desde o início e que terá aliados na tarefa de pressionar o Brasil por um plano de combate ao desmatamento.
"Esse foi um compromisso de campanha do Biden, que deu essa indicação desde o início de voltar ao acordo [de Paris] e voltar às negociações. E mais do que isso, voltar às negociações como protagonista. Então, para essa cúpula dos líderes que vai acontecer, já tem um alinhamento prévio entre EUA, União Europeia, Reino Unido, Alemanha. Estão todos alinhados, nesse sentido, inclusive, de pressionar o Brasil para apresentar nesta cúpula um plano detalhado de [combate ao] desmatamento da Amazônia", aponta a professora.
A mesma pressão, lembra Moreira, será exercida sobre outros países da região pela preservação da Amazônia. Essas pressões, ressalta a pesquisadora, podem se tornar sanções econômicas e comerciais.
"Enquanto o governo brasileiro não demonstrar também que tem um plano de combate ao desmatamento e que está comprometido com isso, não vai ter acesso ao financiamento e pode, inclusive, gerar sanções futuras. Os EUA sempre utilizaram isso como instrumento da sua política externa para pressionar países menos poderosos, que são as sanções. Então isso não está descartado, sanções econômicas, sanções comerciais para forçar o Brasil a adotar uma política mais eficaz no combate ao desmatamento", afirma.
A pesquisadora lembra que a partir do retorno dos EUA ao Acordo Paris, o próprio documento pode servir como instrumento da política externa norte-americana para promover seus interesses.
"O Acordo de Paris pode ser instrumentalizado pela Casa Branca para alcançar outros objetivos estratégicos, eu acho que de recolocar os EUA novamente como líderes dessa ordem internacional. Há certamente uma rivalidade com a China, que acabou assumindo um pouco o lugar dos EUA nas negociações climáticas, negociando com a União Europeia, enquanto os EUA estavam fora", aponta.
Dessa forma, os EUA de Biden retornam ao plano internacional com uma tentativa de liderar os esforços pelo clima e pressionar os países nesse sentido, mas com o objetivo de retomar sua hegemonia.
"Agora, os EUA voltam para a mesa de negociações e no momento crucial, como eu disse anteriormente, no momento em que é a janela de oportunidades para que ações mais eficazes de combate às mudanças climáticas sejam implementadas. É um objetivo geopolítico mais geral, certamente, de retomar o lugar de liderança inconteste dos EUA na ordem global", conclui.