O Brasil chegou na quarta-feira (7) à marca de 341 mil mortos por COVID-19, em meio ao pior momento da pandemia, caos hospitalar e recordes de mortes, que já ultrapassaram as quatro mil em apenas um dia. Diante do cenário, o principal epidemiologista dos Estados Unidos, Anthony Fauci, fez um alerta ao país sul-americano, afirmando o que especialistas brasileiros dizem há semanas: um lockdown nacional deve ser considerado seriamente.
Apesar da recomendação para o endurecimento das medidas de restrição social, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido) segue afirmando que não fará nenhuma medida do tipo a nível federal e critica governadores e prefeitos que tentam mitigar a pandemia através desses meios.
Para o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e um dos fundadores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o especialista norte-americano está correto em sua avaliação.
"Tenho plena concordância com o doutor Fauci, ele está correto ao propor que este momento, enquanto nós esperamos as vacinas, é um momento precioso que nós não podemos perder de vista. Temos que conseguir fazer o possível para que as medidas de afastamento e isolamento social ocorram para diminuir o número de casos, nós temos um número explosivo de casos e esse número terá consequências terríveis", avalia o sanitarista em entrevista à Sputnik Brasil, que alerta ainda que em até três meses o país pode alcançar o número de 500 mil mortos.
"Eu não tenho nenhuma dúvida de que o lockdown rígido de duas, três, até quatro semanas é essencial para controlar a pandemia no Brasil. Países sérios, europeus, por exemplo, fizeram isso e tiveram grande sucesso em controlar a curva epidêmica - que nunca foi tão ruim quanto no Brasil. Nós estamos com UTIs lotadas na grande maioria dos estados, nós estamos com quatro mil mortes por dia e é incompreensível porque nossos governantes ainda hesitam em manter um lockdown rigoroso", afirma Victora em entrevista à Sputnik Brasil.
"Então pode ser até uma coisa um pouco mais meia boca, mas nós temos visto que isso dá resultado. Agora quando se fala em lockdown a gente pensa em ficar em casa, mas lockdown não é só ficar em casa", aponta o médico, ressaltando que a medida envolve um amplo projeto.
Araraquara mostra que lockdown bem planejado funciona
O médico sanitarista Gonzalo Vecina cita o exemplo da cidade de Araraquara, no interior de São Paulo, que após um período de lockdown de dez dias entre o final de fevereiro e o início de março conseguiu frear o avanço da doença, chegando a zerar o número de óbitos diários.
O médico explica que a medida envolveu um amplo planejamento. Além de impor o isolamento às famílias, o município constituiu um comitê científico e adotou um gabinete de crise com as autoridades locais, associações de comerciantes e empresários. O fundador da Anvisa lembra ainda que o município usou uma estratégia de comunicação específica, agilizou a testagem e o atendimento aos infectados, ampliou a fiscalização e suspendeu o transporte público.
"Tudo combinado com a cidade. Qual foi a consequência? A queda de mais de 80% no número de casos novos, uma queda abrupta na mortalidade, 30, 40 dias depois, e no número de casos novos, 20 dias depois [...]. Então, sucesso do lockdown, porém não é [só] o lockdown, é um processo de isolamento social", explica.
O epidemiologista César Victora lembra que muitas cidades brasileiras não seguem o exemplo de Araraquara e fazem fechamentos curtos e sem rigidez, o que ele classifica como "um desrespeito à saúde pública".
"Isso não é lockdown, isso é uma piada, é um desrespeito à saúde pública, e muitas cidades estão fazendo isso, lockdowns muito curtos, isso não funciona. Precisa ter no mínimo duas semanas de duração", aponta o professor da UFPel.
O epidemiologista ressalta ainda que para proteger a população mais pobre nesse período, um esquema de distribuição de alimentos pode ser executado utilizando o emprego das Forças Armadas.
'Temos que atingir 1 milhão de mortos para chegar onde Bolsonaro quer'
Na quarta-feira (7), o presidente Bolsonaro afirmou novamente durante coletiva, que não fará lockdown nacional, algo que tem repetido desde o início da pandemia. Para Gonzalo Vecina, essa postura é parte de um projeto.
"O presidente é contra lockdown, o presidente é contra a vacina, o presidente é contra a máscara. Qual é o projeto do presidente? Que a gente adoeça, tenha a doença, alguns morrem outros ficam vivos, e nós vamos chegar lá na imunidade de rebanho, quando a maioria da população tiver tido a doença. Só que para a maioria da população ter a doença e nós atingirmos a imunidade de rebanho desse jeito, nós vamos ter que ter mais do que um milhão de mortos", afirma o médico sanitarista.
O médico epidemiologista César Victora aponta que as principais medidas necessárias para o combate à COVID-19 vêm sendo ignoradas pelo governo Bolsonaro que, segundo ele, não respeita a ciência.
"Todos esses aspectos tem sido sistematicamente desrespeitados pelo nosso governo federal, que contribui dessa maneira para aumentar o número de mortes. Estamos com quatro mil mortes por dia e não sabemos onde vamos chegar, porque a nova variante P1 é uma variante extremamente contagiosa, extremamente letal e que atinge gente jovem também [...]. É uma crise sanitária como eu nunca vi na minha vida de epidemiologista trabalhando há 40 anos nesse campo", lamenta Victora.
Já Gonzalo Vecina critica a visão adotada pelo presidente brasileiro e reafirma que a melhor saída é um projeto de lockdown para frear os contágios, mesmo que a nível local, enquanto se garante a vacinação em massa da população. Segundo ele, isso deve se estender de forma intercalada até que vacinas suficientes estejam disponíveis.
"[Temos que] lutar pela vacina para todos, não vacina da iniciativa privada, para rico. Todos têm que ter acesso à vacina. Essa que deve ser a alternativa", aponta.