Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais da ESPM de São Paulo, disse em entrevista à Sputnik Brasil ter ficado "bastante surpreso" com o posicionamento da diplomacia do Brasil com relação à quebra das patentes das vacinas contra o coronavírus.
Ontem (14), em um encontro na Organização Mundial do Comércio, ao lado de algumas das maiores economias do mundo, empresas farmacêuticas e especialistas, o governo brasileiro defendeu que as patentes de vacinas precisam ser preservadas, apesar da crise pandêmica que se arrasta pelo mundo.
Seguindo o entendimento dos diplomatas norte-americanos, o Itamaraty indicou que está em busca de acordos com empresas para a transferência voluntária de tecnologia. "Os direitos de propriedade intelectual são incentivos de mercado fundamentais para a inovação e devem ser protegidos de forma sustentada", disse o embaixador Sarquis José Buainain Sarquis.
Para compreender os efeitos desta posição assumida pelo governo de Jair Bolsonaro, a Sputnik Brasil conversou com Leonardo Trevisan. Ele falou sobre o voto da diplomacia brasileira e explicou porque a quebra de patentes com relação às vacinas contra o coronavírus precisa acontecer.
Por que é importante quebrar as patentes?
Na reunião na OMC, o governo brasileiro respaldou os esforços da diretora-geral da entidade, Ngozi Iweala. A ideia é promover uma "terceira via" que garanta a produção em grande escala e a distribuição oportuna e equitativa de vacinas.
O Itamaraty se disse a favor de uma "abordagem sistemática, cooperativa e pragmática para identificar e aumentar a capacidade de fabricação de vacinas, bem como promover acordos de licenciamento voluntários e a transferência acelerada de know-how, tecnologias e insumos", disse o embaixador brasileiro.
Em seguida, ele disse que "é preciso lembrar quando nós analisamos uma pandemia que está beirando três milhões de mortes no mundo, que em outubro do ano passado, Índia e África do Sul fizeram uma proposta para suspender a proteção internacional da OMC sobre vacinas para facilitar a produção de imunizantes contra a COVID-19 em países pobres". Na ocasião, países desenvolvidos como os EUA, Reino Unido, Suíça, Noruega, Japão, além de países da União Europeia, foram contra a medida.
O professor entende que os governos e laboratórios que estavam "bastante avançados na produção de vacinas, tiveram forte apoio governamental". Ele disse que é preciso lembrar que os EUA tem tamanha oferta de imunizantes em razão de uma política de Donald Trump, "que aportou dinheiro público em pesquisa de vacinas, acelerando seu processo".
Leonardo Trevisan enfatizou que "os governos devem pensar de que lado querem ficar na história. A pandemia já revelou sua impossibilidade de controle sem vacina. Precisamos ponderar: proteger proteção intelectual tem sentido, mas não na situação em que estamos".
'A posição do Itamaraty é curiosa'
Em seu discurso na OMC, o embaixador Sarquis José Buainain Sarquis discordou deste ponto de vista. Ele afirmou que "parcerias público-privadas de sucesso devem se tornar referências internacionais para promover vacinas como bens públicos universais". Em seguida, ele defendeu a vacinação no Brasil, e elogiou os esforços da Fiocruz e do Instituto Butantan.
"Os acordos de licenciamento voluntário firmados pela Fiocruz e pelo Instituto Butantan dão sustentação ao Programa Nacional de Imunização", disse o embaixador. "Até agora, produzimos 25 milhões de doses de vacinas contra a COVID-19 e estamos expandindo a produção. O Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz estão indo além, com a construção de novas e modernas instalações para a fabricação de vacinas", afirmou.
Leonardo Trevisan se disse surpreso com essas declarações. Para ele, havia uma perspectiva de que o Itamaraty mantivesse as tradicionais posições brasileiras, mas isso não feito. "O Brasil adotou uma posição curiosa. É uma reversão de uma posição bem tradicional do Itamaraty", comentou.
Ele lembrou que, em 2007, enfrentando um surto de AIDS, a diplomacia brasileira exigiu junto à OMS uma licença compulsória. "Isso foi capitaneado ao lado da China, Índia e outros 70 países para que essa licença acontecesse". A ideia, explicou Trevisan, "é que em emergências sociais, como no caso da COVID-19, haja uma licença compulsória", que quebra barreiras de patentes.
O caso ao qual o especialista da ESPM se refere aconteceu no momento em que o Brasil enfrentou um grave surto do vírus HIV, que causa a AIDS. Ele recordou que empresas farmacêuticas e laboratórios ameaçaram boicote ao Brasil, mas nenhum deles de fato se retirou, "mesmo após o uso da licença compulsória em 2007 e a quebra das patentes".
'As vacinas são para ontem'
Para Leonardo Trevisan, o ponto mais sensível nesta discussão sobre a quebra de patentes é a disponibilidade das vacinas. "Ela não pode ficar restrita a países ricos que podem comprar essas doses", disse o professor.
Segundo ele, "há uma compreensão bastante consolidada entre epidemiologistas de que enfrentar a COVID-19 não é um caso único. As sucessivas ondas e novas cepas provam que há a necessidade de uma cobertura vacinal de caráter internacional". É por esta razão, defende o especialista, que é preciso haver a quebra de patentes. "Ou pensamos no lucro, ou na vida", enfatizou.
O professor Leonardo Trevisan criticou essa postura, que também foi partilhada pelo diplomata do Brasil, e disse que é preciso entender que "o sistema que produziu essas vacinas é uma tecnologia bastante conhecida e disponível. A questão não está no repasse da proteção intelectual exclusiva, mas na perspectiva de lucro em escala".
O especialista comentou que, ante as incertezas da pandemia, como a eficácia das vacinas quanto à transmissibilidade, e, em especial, "uma vez que não há nenhuma certeza se a cobertura vacinal precisa ser anualizada, repetida todos os anos", a produção da vacina em países pobres abre espaço para uma cobertura vacinal mais estendida.