O presidente da República, Jair Bolsonaro, deverá ter uma longa batalha no Senado Federal a partir da próxima terça-feira (27). A data marcará o início dos trabalhos da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid, que investigará a atuação do governo federal durante a pandemia.
A instalação foi determinada no início do mês por decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), e confirmada pelo plenário da corte no dia 14 de abril.
- A CPI que Barroso ordenou instaurar, de forma monocrática, na verdade, é para apurar apenas ações do governo federal.
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) April 9, 2021
- Não poderá investigar nenhum governador, que porventura tenha desviado recursos federais do combate à pandemia.
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Os senadores deverão começar as análises pelo colapso do sistema de saúde de Manaus (AM), em janeiro deste ano, mas também vão apurar a conduta do governo e do Ministério da Saúde na aquisição e distribuição de vacinas e o repasse de verbas federais a estados e municípios.
Segundo especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil, após investidas para barrar a instalação da CPI, o governo também perdeu a disputa para tornar sua composição menos antipática a Bolsonaro.
A primeira reunião, na semana que vem, confirmará os 11 membros da comissão, assim como o presidente, o vice e o relator da CPI. Os participantes foram definidos segundo a proporção dos blocos partidários no Senado, e as funções foram determinadas em um acordo selado entre a maior parte dos integrantes.
A CPI terá cinco senadores independentes: Omar Aziz (PSD-AM), como presidente; Renan Calheiros (MDB-AL), como relator; Eduardo Braga (MDB-AM); Otto Alencar (PSD-BA); e Tasso Jereissati (PSDB-CE).
Serão quatro governistas: Ciro Nogueira (PP-PI); Eduardo Girão (Podemos- CE); Marcos Rogério (DEM-RO); e Jorginho Mello (PL-SC).
Para completar, o grupo terá dois parlamentares da oposição: Randolfe Rodrigues (Rede-AP), como vice-presidente; e Humberto Costa (PT-PE).
De acordo com os especialistas, mais do que a composição, a distribuição das funções foi uma "ducha de água fria" no governo. Segundo eles, Omar Aziz, senador pelo Amazonas, deverá ter uma postura combativa, como presidente da comissão, na investigação do colapso de Manaus.
Já Randolfe Rodrigues é o líder da oposição no Senado e um dos parlamentares mais combativos à atuação de Bolsonaro na pandemia. Foi o parlamentar da Rede que protocolou o pedido original de instalação da CPI na Casa.
Mas a maior derrota do governo, dizem os analistas, se deu na escolha da relatoria, função-chave da CPI por definir os rumos das discussões. Além de crítico do presidente da República, Renan Calheiros já declarou apoio a uma eventual candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2022.
"As CPIs tendem a ser desfavoráveis para o governo. Tanto é que se esforçam ao máximo para evitar que aconteçam. Se isso não ocorre, tentam se organizar para que a CPI não leve a nenhuma conclusão desfavorável, mas nem sempre isso acontece", afirmou José Paulo Martins Junior, cientista político e professor da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) em entrevista à Sputnik Brasil.
Já o professor Eduardo Grin, cientista político da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP), ressalta que, além dos mais críticos ao governo, muitos senadores estão pressionados por suas bases eleitorais devido à piora da pandemia em seus estados.
"Há fatores regionais que afetam. Vai ter pressão da mídia, da academia... Nesse sentido, esses senadores serão sensíveis aos fatores antinegacionistas", avaliou.
Investigação de estados e municípios
A cientista política Mayra Goulart, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lembra que a CPI é resultado de uma junção de dois pedidos.
Se o texto de Randolfe Rodrigues (Rede-AP) visava investigar apenas o governo federal, a proposta do governista Eduardo Girão (Podemos- CE) era apurar como foram usadas as verbas gastas por estados e municípios na pandemia.
Para a especialista, a segunda análise não deveria caber ao Senado, já que os atos ocorreram em outras esferas.
"Acho que as questões subnacionais deveriam ser averiguados através de outros mecanismos, não de uma CPI nacional", disse à Sputnik Brasil.
Segundo Eduardo Grin, da FGV, o governo acredita que a inclusão de estados e municípios na pauta deverá minimizar o desgaste de Bolsonaro.
Porém, o especialista avalia que, mesmo que alguns governadores venham a ser responsabilizados por seus atos, o foco da CPI vai se manter no âmbito federal.
"A concessão feita é mais uma cortina de fumaça. Ao fim e ao cabo, o que vai centralizar o debate é o governo Bolsonaro. Por tudo que ele fez, com descoordenação de orientações e retardando a compra de vacina, vai ser muito difícil comparar os 27 estados com o governo", afirmou.
O cientista político diz que a própria composição da CPI, com os diferentes partidos e senadores de vários estados, deve diluir a tentativa do governo federal de afetar governadores, já que poderá não se formar uma unidade contra determinada unidade da federação.
Apesar de o governo federal ser o centro das investigações, José Paulo Martins Junior, da Unirio, avalia que o repasse de verbas a estados e municípios deva ser investigado. Segundo ele, a maior parte dos governos não chegou a prestar contas sobre o destino do dinheiro.
"Muitos gastaram dinheiro comprando medicações que não têm comprovação científica. Então, vai ser importante para a sociedade brasileira conhecer de perto com mais detalhes como os governos têm usado o dinheiro público", disse o especialista.
Bolsonaro poderá ser investigado?
Durante o andamento dos trabalhos, os integrantes da CPI devem apresentar requerimentos para convidar ou convocar autoridades a fornecer informações.
Independentemente das conclusões, o presidente da República não pode ser considerado investigado pela comissão. Neste caso, Bolsonaro poderia apenas ser convidado a falar, não sendo obrigado a comparecer diante dos senadores.
Os parlamentares poderão inquirir testemunhas, ouvir indiciados, requisitar informações oficiais e pedir inspeções do Tribunal de Contas da União (TCU), mas não têm o poder de abrir processos ou pedir a prisão de suspeitos.
Martins Junior explica que, apesar de não ser diretamente investigado, o nome do presidente, inevitavelmente, vai estar no foco das discussões.
Ele lembra que, ao longo da pandemia, Bolsonaro incentivou aglomerações, indicou o uso de medicações sem comprovação científica e desestimulou o uso de vacinas. Todos os temas estão na pauta para debate.
"Não tem como uma CPI que vai investigar a pandemia não atingir o presidente. Se isso vai ter algum impacto negativo na avaliação dele, aí já não sabemos, mas com certeza ele será atingido", afirmou o professor da Unirio.
A CPI deverá ouvir ministros e ex-ministros do governo, além de secretários do Ministério da Saúde e autoridades responsáveis pela área de comunicação.
O ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, deverá ser um dos principais alvos da comissão. Foi durante sua gestão que ocorreu o colapso de saúde em Manaus. Ele também sofreu críticas pelo atraso na aquisição e distribuição de vacinas pelo país.
O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta deverá ser ouvido e, devido às suas divergências com o presidente no tratamento à pandemia, pode colaborar com informações negativas ao governo.
"Pode vir à tona uma série de fatos que demonstre não só a inépcia, mas uma estratégia deliberada de desvalorizar as vacinas, de obstaculizar a obtenção dos imunizantes, de minimizar a pandemia e de combater o isolamento social", apontou Mayra Goulart, da UFRJ.
O melhor e o pior cenário para o presidente
A CPI da Covid terá duração de até 90 dias, com a possibilidade de prorrogação por mais 90. Dependendo das evidências encontradas, o relatório final da CPI pode gerar um projeto de lei ou ser enviado ao Ministério Público com pedido de responsabilização civil e criminal dos infratores.
Eduardo Grin, da FGV, avalia que o alto grau de publicidade que a CPI terá pode mexer com a opinião pública.
Ele acredita que o desenrolar das investigações e dos fatos que vierem a ser revelados podem desgastar ainda mais o presidente com o eleitorado brasileiro.
Em sua visão, neste caso, o centrão, bloco de sustentação do governo no Congresso, pode emparedar Bolsonaro, condicionando a não abertura de um processo de impeachment a liberação de mais emendas parlamentares visando as eleições de 2022.
"Vai haver uma enorme publicidade, e ele já vem perdendo apoio de segmentos empresariais. Tenho a impressão de que, politicamente, vai ampliar o desgaste para um processo de impeachment. Tudo o mais constante, a CPI vai lhe custar muito caro, politicamente e com o centrão", afirmou Grin.
Para José Paulo Martins Junior, da Unirio, o pior desfecho para Bolsonaro seria o indiciamento de ministros e ex-ministros, com a exposição pública das investigações. Mas ele não acredita que Bolsonaro perca sua base de apoio político.
"O núcleo duro de apoio, de 25% a 30% de eleitores, independentemente do que ele faça, vai continuar apoiando, porque o critério de avaliação do presidente não é se ele está fazendo um bom ou mau trabalho, mas é ser aquele farol da liberdade, do 'anticomunismo' no Brasil", disse o cientista político.
Já Mayra Goulart, da UFRJ, acredita que a questão das vacinas pode ser um divisor de águas.
Para ela, a demonstração de que o governo agiu para criar obstáculos contra a aquisição e a distribuição de doses pode trazer um "impacto considerável na popularidade do Bolsonaro".
Todos os especialistas ouvidos pela Sputnik concordam que o "cenário dos sonhos" para o presidente, sem o indiciamento de ex-ministros e integrantes do atual governo, com as investigações voltadas, principalmente, a governadores, não é muito factível.
"A aposta dele é jogar com o tempo, de que vai ter uma melhora da pandemia com o avanço da vacinação, permitindo a recuperação da economia e do emprego. Cada semana que o governo ganha joga a favor da sua estratégia", apontou Eduardo Grin, da FGV.
Contudo, para os especialistas, a composição desfavorável da CPI pode estragar os planos do governo.
Mayra Goulart ressalta que podem ser "180 dias de pautas negativas envolvendo diretamente o governo federal e demonstrando uma atitude deliberada de sabotar o país na corrida pelas vacinas".
"Quais desses caminhos poderão derivar da CPI? Vamos esperar para ver a robustez das investigações e como será a disputa de narrativas e versões na opinião pública. Só assim se saberá o quanto será possível avançar contra o presidente Bolsonaro politica, civil e criminalmente", disse Grin.