As gravações feitas por uma ex-aluna, vítima de assédio sexual, foram anexadas como provas na ação civil pública que o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) ajuizou contra o colégio, a diretora acadêmica, Ana Maria Bastos Loureiro, e o então coordenador de ensino médio, Marcos Vinicius Borges da Silva Machado. Alegando omissão por parte deles e da instituição, o MP-RJ requer o pagamento de indenizações e o afastamento dos dois de cargos de direção.
Um dos áudios obtidos por Sputnik Brasil prova que Ana Loureiro já havia tomado ciência de denúncias de assédio sexual contra um professor em 11 de outubro de 2018, apesar de ela ter assinado um comunicado a pais de alunos do Santo Inácio em 4 de junho de 2020 dizendo-se surpreendida quando os casos vieram à tona nas redes sociais e na imprensa, no ano passado. A escola pertence à Companhia de Jesus, a mesma ordem católica do Papa Francisco.
Na mesma gravação, feita por uma das vítimas, a diretora acadêmica diz, em reunião com alunas, que Marcos Vinicius Machado e o padre Ponciano Petri, então reitor do colégio, já haviam tomado conhecimento das denúncias, bem como a advogada da escola. Ela acrescenta que o professor acusado de assédio sexual havia sido repreendido, inclusive com advertências por escrito em sua ficha funcional. Ana Loureiro repetiu isso diversas vezes durante a reunião de quase 40 minutos.
"Então, assim, o que eu estou alertando a vocês, o cuidado que estou tendo com isso... Eu chamei, fiz um discurso de uma hora, com toda contundência do Marcos Vinicius, ele [professor acusado de assédio] assinou, a ficha dele já está comprometida com uma advertência, tá? Qualquer lugar onde ele vá trabalhar isso custa, isso é pior do que um processo, porque consta na ficha dele. E aí, com todas as ameaças possíveis. Naquele momento, o que é que eu queria: 'ele vai parar agora, ele vai pensar duas vezes antes de fazer qualquer tipo de gracinha que seja'. Agora, vocês estão me trazendo mais elementos de ex-alunas, etc. etc... Eu tenho que expor tudo isso para a Ana Sahione [advogada do colégio], ver o que é que a gente vai fazer até o final do ano e o que é que vai acontecer. E aí é o tempo que peço a vocês para que a gente possa conduzir isso", pede Ana Loureiro.
Veio o fim de 2018, e nada aconteceu. No entanto, a transcrição de outra gravação, desta vez de uma reunião entre um dos professores acusados de assédio sexual e a diretora acadêmica, em 19 de fevereiro de 2019, contradiz o que Ana Loureiro havia afirmado às alunas no ano anterior. Este segundo áudio foi anexado em CD pelo próprio professor no inquérito policial em que foi investigado por assédio sexual na 10ª Delegacia de Polícia (Botafogo).
Segundo trechos da gravação feita pelo docente, transcritos nos autos policiais, Ana Loureiro elogia o professor e diz que vai defendê-lo, "pois sabe que é maluquice da cabeça da aluna". De acordo com a transcrição, a diretora também afirmou que a menina "era pancadinha", "uma liderança que contaminava as outras" e que "não há nenhuma materialidade em relação às denúncias apresentadas para a escola". Já em relação ao docente, ela teria dito: "É nosso professor e coordenador aqui que nós temos tanto carinho".
O docente também anexou ao inquérito sua ficha funcional no Santo Inácio para mostrar que era bem avaliado por seus superiores, contrariando a versão de Ana Loureiro de que ele havia sido advertido por escrito.
Diretora desencoraja alunas a denunciar: 'Todas ficarão expostas'
Em outro trecho da gravação feita pela aluna em 11 de outubro de 2018, Ana Loureiro desencoraja as alunas a seguirem adiante com as denúncias de assédio sexual, mesmo tendo elas relatado casos em que o professor teria passado a mão nas coxas e nos seios de menores de idade. A diretora cita uma solução interna, que culminaria com a demissão do professor ao fim do ano. Senão, teria que acionar o Conselho Tutelar. Porém, ela se mostrou mais preocupada com a imagem do Colégio Santo Inácio.
"Assédio é uma coisa mais física, é uma coisa mais, que aí é jurídico, aí a gente tem que, eu até falei com você, aí tem desdobramentos. Eu conversei com a advogada do colégio a esse respeito. As consequências são graves, e aí vai ter que ter depoimento, aí vai ter que ter Conselho Tutelar, a gente tem que provar. Porque, da mesma forma, como ela disse: 'o vento venta lá e venta cá'. A gente pode levar isso a um grau maior, tá, inclui demissão, e aí a gente não sabe como que a imagem do colégio fica, mas enfim, né. A imagem de quem está envolvido vai também e, se a gente não tem elementos, bate isso na Justiça, tá, porque eu não vou fazer isso virar fofoca. O Colégio Santo Inácio faz a coisa virar séria. E aí todas terão que depor, todas ficarão, vamos dizer assim, expostas. E aí, se a gente não consegue ter elementos de prova cabais, que não pode ser, 'eu acho', 'eu sinto', 'eu acho que aquele gesto que ele faz pode ser'. Não pode ser, porque o assédio é coisa física, é uma coisa grave", diz a diretora.
Mais de dois anos e quatro meses depois, em manifestação descrita na ação civil pública, o Conselho Tutelar da Zona Sul destacou a omissão e a demora na atuação do Colégio Santo Inácio, que, até o dia 19 de fevereiro de 2021, não apresentou ao Conselho nenhum resultado do trabalho acerca do reordenamento institucional e pedagógico sugerido pelos conselheiros tutelares.
"Infelizmente, o Conselho Tutelar não recebeu até o momento nenhum sinal (documentos produzidos, protocolos revisados ou convite para debate ou apreciação dos mesmos) de que o Colégio Santo Inácio está orientado para fazer cessar as situações de desconforto e constrangimento, ameaça ou violação de direitos, produzidas no âmbito do colégio", lê-se em um trecho da ação.
Ana Loureiro também aconselha as alunas a não procurarem a imprensa para fazer as denúncias de assédio sexual. Segundo ela, era preciso fazer de maneira objetiva e correta, e "não midiática, com estardalhaço", sob o risco de elas ficarem desacreditadas. A diretora dá, então, sua palavra de honra de mulher de levar o caso até as últimas consequências, mas reitera que não quer que as denúncias cheguem aos jornais.
"Olha como que a gente fica, você está entendendo os dois polos que a gente fica, isso aqui está um caldeirão. Então, o que que eu preciso de vocês? Quero que vocês me ajudem para eu conseguir dar uma resposta para vocês. Eu preciso desses elementos, tá... a gente precisa terminar esse ano letivo. Eu quero juntar isso, entende, se vocês tiverem até uma ex-aluna que queira falar comigo, eu converso com essa ex-aluna pra gente juntar esses elementos, para que a gente possa fazer esse processo, até se for o caso de demitir esse professor no final do ano, e aí o Padre Ponciano [Petri, então reitor] tem que estar sabendo, né... O setor jurídico do colégio tem que estar envolvido nisso, é uma demissão delicada, pelo motivo que é, a única coisa que, aí vou dizer sinceramente a vocês, eu acho que não é bom para o colégio e não é bom para vocês também... Espero que vocês não estejam querendo isso, que aí acho que é um tiro no pé de vocês, que vocês confiem que o colégio vai fazer tudo que for necessário para que isso nunca mais aconteça. E eu dou minha palavra de mulher, de honra, de que isso nunca mais vai acontecer aqui dentro, tá, que a gente vai levar isso, e eu vou fazer junto com, até porque tem uma advogada mulher, a Ana Sahione, que é minha xará. Nós vamos levar isso às últimas consequências. O que eu estou, vamos dizer assim, eu não quero que isso aconteça: que a gente chegue aos jornais", recomenda.
No entanto, o Colégio Santo Inácio só agiu quando o caso chegou à imprensa, em junho de 2020. Após o site da revista VEJA Rio ter publicado denúncias de ex-alunas, a 10ª DP (Botafogo) abriu inquérito para investigar dois professores. Depois da repercussão midiática, a escola afastou os docentes, mas só os demitiu quando eles foram indiciados por assédio sexual pela polícia. Contudo, nunca explicou o motivo das demissões, nem à imprensa, tampouco aos pais de alunos. Os professores foram denunciados criminalmente por assédio sexual em março deste ano pelo MP-RJ.
Ana Loureiro ataca ex-alunas: 'É covardia da parte delas'
O temor de Ana Loureiro de que as denúncias chegassem à imprensa era tão grande que, em determinado momento da gravação, ela chega a chamar os jornalistas de "vampiros". Sputnik Brasil entrou em contato por telefone com a diretora para ouvir sua versão, mas ela disse que não poderia falar com este correspondente da Sputnik em Portugal.
As ofensas não se restringem aos profissionais da imprensa. A diretora acadêmica também chama ex-alunas de covardes e as acusa de manipulação, por terem feito denúncias anônimas, sem querer identificar seus nomes. Para preservar as vozes e identidades das vítimas, Sputnik Brasil não vai publicar esse trecho do áudio, apenas a transcrição do diálogo.
Ana Loureiro: Por que não fizeram antes? Ex-alunas estão fazendo agora.
Aluna 1: Acho que ninguém teve coragem.
Ana Loureiro: É covardia da parte delas, então elas venham aqui se expor.
Aluna 2: Elas falaram que poderiam vir.
Ana Loureiro: Entende? Então que elas venham, o que não pode é elas ficarem manipulando vocês porque são ex-alunas estão livres!
Aluna 1: Não é manipulação.
Ana Loureiro: É manipulação!
Ao fim da reunião, Ana Loureiro pediu que as alunas enviassem um e-mail com as denúncias. Um documento de Word com as denúncias foi enviado para o endereço eletrônico profissional da diretora acadêmica do Colégio Santo Inácio no mesmo dia 11 de outubro de 2018, mas, segundo as vítimas, nunca foi respondido.