O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou com vetos a medida provisória que viabiliza a privatização da Eletrobras em 13 de julho. A estatal é a maior empresa de energia elétrica da América Latina e governo federal espera que a privatização reduza a conta de luz em até 7,36%.
Porém, foi incluído nesse cálculo números da hidrelétrica Itaipu Binacional que não têm relação com a venda da estatal. Segundo o portal UOL, os valores da usina chegam a responder por mais da metade da possível redução na conta de luz que o Ministério de Minas e Energia atribui à privatização.
A Sputnik Brasil conversou com José Antônio Feijó de Melo, ex-chefe de gabinete da Presidência da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), sobre as consequências da privatização da Eletrobras para o consumidor, para o governo e o impacto dessa decisão sobre a Itaipu Binacional, uma das maiores usinas do mundo, localizada na divisa com o Paraguai, no Paraná.
Itaipu continuará tendo papel importante
Feijó recorda que nem a Itaipu Binacional, nem as usinas nucleares entraram no processo de privatização, de forma que ocorrerá um desmembramento da Eletrobras e paralelamente à privatização será criada outra estatal para acomodar a Eletronuclear e Itaipu. No caso da primeira, o motivo é que a exploração do urânio, de acordo com a Constituição brasileira, é monopólio da União, e não pode ser privatizada. No caso da segunda:
"São compromissos assumidos do Brasil perante o Paraguai. Porque Itaipu não é só brasileira, é uma empresa binacional em que 50% pertence ao Brasil e 50% ao Paraguai. Isso é regulado mediante um contrato que foi celebrado em 1973", explica o especialista.
Em 2023, inclusive, o contrato será renegociado. O ano marca também a quitação da dívida para a construção de Itaipu, o que significa que a energia da empresa terá um preço muito menor porque vai desaparecer todo o custo de capital, comenta Feijó.
O analista lembra que a construção da estatal teve uma enorme repercussão no setor elétrico brasileiro e, na década de 1980, respondia por 20% da energia consumida no país.
"Ainda hoje a contribuição é muito grande […]. Itaipu continuará sendo uma grande reserva, se não mais [representando] 20% do consumo, já que o consumo cresceu, mas ainda com algo acima dos 15%. Porque temos metade da energia garantida e temos as sobras do Paraguai, que tem interesse em vender essa energia para gente porque a negociação é feita em dólar", afirma.
Mas este tem sido um ano difícil para Itaipu. O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, afirmou em maio que o Brasil atravessa a maior crise hídrica desde 1931: "E só não é pior porque não se media antes. São 91 anos. E agrava-se o fato de que também estamos tendo a menor afluência em Itaipu desde a sua construção".
Com a pouca quantidade de água, Itaipu desligou oito de suas 20 turbinas. O objetivo, segundo a empresa, foi otimizar os recursos. Ainda assim, a estatal afirma que "continua atendendo plenamente os montantes de energia que estão sendo requisitados pelos sistemas elétricos brasileiro e paraguaio".
"Face a esta crise hídrica histórica, reitera-se que a Itaipu tem adotado estratégias para operar a usina com máxima eficiência, de forma a continuar contribuindo com a manutenção da segurança do suprimento de energia elétrica ao Brasil e Paraguai, com a pronta disponibilidade de potência nos momentos de maior necessidade de ambos os países", disse a empresa citada pelo jornal O Globo na semana passada.
Privatização é grande equívoco
Feijó garante que a privatização da Eletrobras é um grande equívoco, um grande erro, uma vez que o Brasil, um país que tem uma grande capacidade hidrelétrica, está abrindo mão do controle sobre o setor de energia elétrica.
"Ao estabelecer que tudo será privado, o país fica sem nenhuma capacidade de interferência direta sobre o assunto", começa por explicar o especialista. E isso é negativo principalmente porque quem controla a hidrelétrica comanda a água do rio, que não é usada apenas para energia, é fundamentalmente ligada ao interesse público de toda a região. "Isso vai ter repercussão. O poder público estará nas mãos da iniciativa privada", sentencia.
O analista comenta que grandes países capitalistas e com grande poder de geração hidrelétrica, como EUA, Canadá, Suécia e Noruega preservam esse setor sobre o controle do Estado. "Nos EUA, as grandes hidrelétricas não são nem da máquina pública, é o Exército que controla. E o Brasil está abrindo mão disso", lamenta.
Indústria brasileira é a energia elétrica
Os problemas enfrentados pelo setor elétrico brasileiro começaram ainda no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), diz Feijó, quando o então presidente, influenciado pelo modelo da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1979-1990), mudou a filosofia do setor de serviço público essencial, controlado estritamente pelo poder público, para sujeito às regras de mercado e competição, aberto à iniciativa privada.
"Deu errado. As tarifas começaram a subir muito e os investimentos privados não apareceram. Com o crescimento do consumo, resultou no racionamento", explica.
O governo Lula (2003-2010) introduziu regras, mas não alterou a filosofia de mercado, de modo que os problemas foram se agravando a ponto de, em 2012, se chegar a um pico insustentável, o que resultou na decisão de o governo baixar as tarifas artificialmente através de decreto, o que trouxe grande prejuízo às distribuidoras, em especial às ligadas ao sistema Eletrobras.
Feijó conclui afirmando que não espera grande investimento privado na energia elétrica porque o objetivo da iniciativa privada não vai ao encontro das necessidades do setor.
"Eu afirmo que a iniciativa privada, particularmente no Brasil, não investe, ela retira capital. Está provado que, no setor elétrico brasileiro, quem está financiando mais é o Estado, sobretudo através do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social]. A iniciativa privada vai investir, mas vai investir o dinheiro que o BNDES, banco público, emprestar", afirma.
O especialista acrescenta que a Eletrobras sempre deu lucro e com esse montante a estatal reinvestia no setor elétrico, fazendo novas obras, algo que a iniciativa privada não faz.
"O que faz a iniciativa privada com os lucros? Retira sob a forma de dividendos. Não é por acaso que é um dos grandes negócios hoje no Brasil, todo mundo quer investir no setor elétrico. Não se investe mais na indústria. A indústria brasileira está minguando, a indústria brasileira é a energia elétrica porque é faturar e retirar, é um grande negócio."