Os semicondutores estão em falta no mundo inteiro. A crise de fornecimento atingiu a indústria automobilística e também as empresas de eletroeletrônicos, principalmente as que fabricam tablets, computadores e celulares.
Apesar do seu pequeno tamanho, a escassez desses chips está causando um verdadeiro transtorno nessas indústrias. A crise é tão forte que chegou a parar a produção de grandes marcas de automóveis, como a da Volkswagen, que neste mês de julho dará férias coletivas para os trabalhadores de duas fábricas em São Paulo pela falta da peça para produção de carros, segundo o G1.
Um carro moderno, por exemplo, conta com 500 a 1.000 semicondutores em sua estrutura de montagem. Estima-se que esse ano cerca de 120 mil veículos deixaram de ser fabricados no país pela falta dos pequenos chips que hoje estão valendo ouro.
A Sputnik Brasil conversou com José Roberto Soares, engenheiro eletricista e professor universitário com doutorado em Ciências e especialista em Gestão Financeira de Negócios para entender melhor o que impulsionou a crise, qual quadro se desenhou na indústria brasileira diante dela e como se dá a guerra comercial entre EUA e China no setor.
Semicondutores na indústria automobilística
Soares conta que a indústria automobilística entrou na era da digitalização, da automação, e os carros, em função da necessidade de reduzir a poluição, gerar mais conforto e autonomia, "ficaram mais monitorados". Os semicondutores, no caso, são peças-chave para esse processo de digitalização.
"O motorista hoje é um mero condutor, ele não tem mais atuação em quase nada. O carro praticamente ficou autônomo, então hoje você não consegue produzir mais automóvel, ônibus, caminhão sem que você tenha toda essa parte de automação muito bem estruturada e programada", explicou o engenheiro.
Sobre a crise na produção dos pequenos chips, Soares diz que, como em diversos setores, o motivo é a pandemia da COVID-19, que gerou uma redução brutal no consumo mundial de vários produtos, inclusive na venda de carros.
Diante da falta de procura, o engenheiro afirma que a indústria automobilística parou de produzir, ou seja, parou também de comprar semicondutores para a montagem de automóveis que ficou estacionada.
Visto isso, os exportadores de chips se voltaram para indústria da tecnologia, vendendo a peça para empresas que fabricam tablets, computadores e celulares. Agora, com a lenta retomada da produção de carros, os fabricantes "estão tendo que entrar na fila da programação de produção. Por exemplo, uma montadora pode ter que esperar seis meses para adquirir essa matéria-prima", disse Soares.
O engenheiro ainda ressalta que essa escassez para indústria automobilística não acontece só por um desaquecimento da produção no ano passado, mas também devido ao grande volume na demanda de novos computadores e celulares que, por conta da pandemia, ganharam protagonismo na vida das pessoas que utilizam essas tecnologias para trabalhar e se comunicar.
E adiciona que até mesmo a indústria da tecnologia sofreu com a falta dos pequenos chips, pois a procura por produtos do setor foi abundante e contínua.
"Se de um lado houve redução da demanda pela indústria de transformação, por outro lado o uso pessoal dessas tecnologias que demandam os semicondutores foi muito forte."
Como principais fornecedores de semicondutores no mundo, Soares cita a Intel e MD, entretanto, destaca a larga produção asiática oriunda de Taiwan e da Coreia do Sul.
Produção de chips no Brasil
Sobre o fato de o Brasil não ter empresas que produzem semicondutores, Soares cita apenas uma que o país tem, a CITEC, no Rio grande do Sul, porém, a mesma está em processo de fechamento até fevereiro do ano que vem, segundo o engenheiro.
Entretanto, o especialista observa que os chips produzidos na empresa sulista compreendem os direcionados para monitoramento de gado e os implantados em pedágios de estradas, e não os que foram citados anteriormente para indústria automobilística e da tecnologia.
"A demanda de chips sempre vai continuar forte no Brasil porque o país tem muitas montadoras, o setor da agricultura também necessita demais para vigilância do gado, ou seja, sempre vamos precisar da importação de semicondutores", disse Soares.
Para uma possível inserção da indústria brasileira na produção dos pequenos chips, o engenheiro afirma que seriam necessários "em torno de R$ 18 bilhões" para essa empreitada, e aponta para o fato de que pode ser um investimento perigoso, "pois não sabemos se venderíamos esse produto, e se pegarmos o chinês, que vende o chip a R$ 0,01 centavo a menos, já 'matou todo mundo'".
"A Intel já quis colocar uma fábrica no Nordeste, mas não deu certo, eles teriam que pagar muito imposto, financiamento e acabou não acontecendo", contou.
No país, o setor que mais sofreria com essa falta de chips seria mesmo a parte de transporte, principalmente na produção de caminhões, segundo Soares, e enfatiza o fato do atraso na produção de automóveis já que as empresas estão "parando por dez, 20, 40 dias esperando chegar os insumos".
"Não são só os semicondutores que estão faltando para a indústria brasileira, porque na verdade essa indústria é uma montadora, então ela precisa receber componentes de muitos parceiros, e como o setor ficou parado muito tempo essa cadeia foi rompida [...] então além dos chips, o que falta também é a cadeia de insumos voltar a funcionar, até porque o pequeno empreendedor de ponta ele faliu e para repor esse produtor vai demorar", explicou o especialista.
Segundo Soares, o que falta hoje "é estabelecer toda a cadeia de produção na qualidade e na quantidade que se espera para montar um automóvel, uma vez que a indústria automobilística está na geração do 4G, onde tudo é automatizado e chega em tempo real para montar o carro. É preciso estar com tudo pronto em 'uma prateleira', porque se faltar uma peça, já não é possível a produção".
Existe uma previsão de que a oferta do equipamento no mercado automotivo se estabilize no terceiro trimestre de 2022, no entanto, Soares acredita que no Brasil isso levará mais tempo e aponta que no próximo ano "podemos ter uma pequena recuperação no segundo semestre se conseguirmos dominar a pandemia".
"O Brasil vai demorar um pouco mais para se reestabelecer, pois o governo tem feito alguns investimentos, mas a dívida pública do país é muito alta e essa semana foi anunciado que os investidores estrangeiros estão se retirando do Brasil, ou seja, vai ter menos dinheiro para investimento e empréstimo", respondeu o engenheiro.
Como mediar a crise no setor?
Soares afirma que a melhor forma de contornar a crise é através do planejamento, "é você ter todos os investimentos já programados, o marketing das empresas preparado para fazer a divulgação para que assim as pessoas possam sair para comprar".
Entretanto, o engenheiro salienta que na parte de semicondutores, os compradores vão ter que, como mencionado, "aguardar na fila", uma vez que "não é possível criar mais fábricas produtoras dessa matéria-prima".
"A Alemanha está fazendo uma fábrica de semicondutores na Bosch, principalmente para atender a demanda da própria companhia, mas seria a única nova, no restante, tem que aguardar. Levam-se anos e muito dinheiro para fazer uma fábrica dessas."
Outra companhia que investiu na produção de semicondutores foi a Samsung. O lucro líquido da empresa aumentou 73% no segundo trimestre de 2020 em relação ao mesmo período de 2019, graças à forte demanda e aos preços mais altos dos chips, superando as expectativas do mercado, segundo o portal Terra.
Semicondutores e 'guerra' comercial entre China e EUA
Na interpretação do especialista, essa guerra acontece porque os parceiros norte-americanos estão perdendo mercado para os chineses.
"Os chineses são fantásticos, eles têm milhares de engenheiros para fazer qualquer coisa, eles começam 150 projetos e aquele que deu certo ele despeja todo o dinheiro nele e em três semanas espalha aquilo no mundo inteiro, então quem concorre com isso?", explicou.
Para Soares tanto os EUA quanto a Europa estão "na mão dos chineses", e vêm promovendo uma guerra ideológica para enfraquecer o poderio chinês, mas essa estratégia não está dando certo porque a "capacidade de produção dos chineses é muito forte". "A parte comercial precisa se unir com a China e não tentar acabar com a ela."
Sobre o valor geopolítico dos semicondutores e a sua influência nas relações internacionais, o engenheiro diz que esse movimento acontece porque estamos falando de tecnologia e hoje em dia tudo depende dela.
"Hoje está tudo interligado, aquilo que chamávamos de Aldeia Global está realmente acontecendo [...] e está instantâneo isso, o que temos de fibra e satélite é muita coisa."
Soares acredita que diante de toda essa conexão, o futuro é "cada vez conversar mais, ter cada vez menos esperteza [no comércio dos semicondutores] e ter um pouco mais de pudor e regras, assim, estaríamos em um lugar melhor".
Em junho, a China, procurando ultrapassar os EUA na "guerra" de semicondutores e driblar as sanções impostas por Washington a Pequim nesse setor, decidiu nomear o vice-primeiro-ministro do país asiático, Liu He, para comandar novas estratégias para a área, conforme noticiado.
Segundo Gu Wenjun, analista-chefe da empresa de pesquisa ICwise, "a China é o maior usuário de chips do mundo. Então, a segurança da cadeia de suprimentos é de elevada prioridade. Não é possível que um país controle toda a cadeia de suprimentos, mas o esforço de um país é definitivamente mais forte que o de uma única empresa".