Quais serão possíveis consequências do envolvimento de Guedes e Campos Neto no caso Pandora Papers?
13:00 06.10.2021 (atualizado: 08:57 19.11.2021)
© AFP 2023 / LOIC VENANCEPandora Papers (imagem referencial)
© AFP 2023 / LOIC VENANCE
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A Sputnik explica as possíveis consequências do envolvimento do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, no caso Pandora Papers.
Depois que o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos divulgou, no último domingo (3), o relatório Pandora Papers sobre alegado envolvimento de alguns líderes mundiais, funcionários públicos e artistas em esquemas de offshore, inclusive o ministro da Economia o presidente do Banco Central do Brasil, o procurador-geral da República, Augusto Aras, falou que não pode fazer investigações com base em notícias.
Porém, logo depois Aras acabou abrindo, na segunda-feira (4), uma investigação preliminar sobre os investimentos no exterior dessas figuras. Paulo Guedes é proprietário de uma empresa offshore nas Ilhas Virgens Britânicas que, em 2015, contava com US$ 9,55 milhões – mais de R$ 52 milhões no câmbio de hoje.
Além do Ministério Público, na terça-feira (5) a Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados convocou os dois para que esclarecerem informações sobre as empresas mantidas por eles em paraísos fiscais. A Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado também aprovou convites para que Guedes e Campos Neto prestem esclarecimentos sobre as empresas.
Para explicar quais os riscos que essa investigação pode trazer ao governo brasileiro, a Sputnik Brasil teve uma conversa com Paulo Niccoli Ramirez, cientista político e professor da ESPM-SP, que ajudou a entender o assunto.
Conflito de interesses
Primeiramente, é preciso ressaltar que, do ponto de vista legal, não há nenhum problema com um brasileiro ter contas no exterior. Não ocupando cargos públicos e não havendo nenhum conflito de interesses, qualquer brasileiro tem o direito de ter uma conta em uma offshore. Isso faz parte da legislação e está no campo da legalidade.
Mas o caso dos funcionários públicos é excepcional. O problema principal que se torna atual é um conflito de interesses.
Conforme esclarece Paulo Niccoli Ramirez, o que se mostrou nos últimos dois anos da administração Bolsonaro foram verdadeiras vistas grossas do governo, principalmente do Ministério da Fazenda, em relação à desvalorização do real frente ao dólar.
Isso permitiu o estabelecimento de interesses de grupos de investidores: quanto mais se desvaloriza a moeda brasileira, maior será o retorno para fazer investimento ou comprar propriedades, e nisso reside o problema da citação do nome de Paulo Guedes.
"O problema não é que Guedes tenha em si uma conta de uma offshore: o problema é ele estar no Ministério da Fazenda e ter uma conta de offshore num instante em que a moeda brasileira mais se desvalorizou nos últimos 30 anos", resumiu o professor.
Desde que Bolsonaro assumiu a presidência, continua um processo de desvalorização da moeda brasileira, em torno de 40%. E o mesmo indivíduo Paulo Guedes, possuindo contas em um paraíso fiscal, lucrou com essa desvalorização do dólar, se compararmos os números referidos acima.
Um ponto agravante da situação na qual ficou o ministro e uma das questões principais ao ministro é por que a origem de seu dinheiro em paraíso fiscal é desconhecida e por que essa informação não era tão pública antes.
© AFP 2023 / LOIC VENANCEIlustração fotográfica mostra logotipo do Pandora Papers, em Lavau-sur-Loire, oeste da França, em 4 de outubro de 2021
Ilustração fotográfica mostra logotipo do Pandora Papers, em Lavau-sur-Loire, oeste da França, em 4 de outubro de 2021
© AFP 2023 / LOIC VENANCE
O analista avalia o caso como "um grande escândalo" e as informações reveladas como "estarrecedoras", que produzem um estranhamento e que precisam ser melhor explicadas.
Para ilustrar os interesses do atual ministro da Economia, o professor relembra as palavras de Guedes no ano passado: ele disse que havia um "absurdo" que empregadas domésticas viajassem para os EUA para Disney e que o ideal é que o dólar ficasse "mais alto" para que isso fortalecesse o turismo nacional. "Parece que isso foi utilizado como um pretexto, quando o real interesse era ganhar na condição de investidor nessa offshore", acredita.
Proteção do governo
Mais do que isso, segundo Ramirez, "as instituições políticas brasileiras, sobretudo Ministério Público, foram de alguma maneira orquestradas por Bolsonaro para proteger os membros do governo". Sua assistência poderia explicar por que até hoje não foi levado adiante nenhum processo de impeachment em relação às questões em torno da pandemia, a casos de genocídio etc.
Por exemplo, o próprio Guedes, antes de assumir o cargo de ministro, solicitou à Comissão de Ética Pública em 2019 toda uma análise exatamente da possibilidade dele se manter ou não nessa offshore. E o resultado dessa análise saiu apenas em junho deste ano, o que mostra, segundo Ramirez, uma lerdeza dessas instituições que seriam responsáveis por fiscalizar os agentes do governo.
O cientista político acredita que isso acaba demonstrando que havia interesses de Paulo Guedes, inclusive ações que se voltam a favor de privatizações e menor índice de intervenção estatal em políticas econômicas que fossem capazes de segurar o preço da moeda nacional.
O professor acredita que, se isso ocorresse em qualquer outro governo, de FHC, de Temer, de Lula, o ministro teria sido exonerado. Mas uma das características do governo Bolsonaro é proteger seus membros, afirma. Então, é pouco provável que Paulo Guedes saia do cargo, mesmo porque ele é uma das peças-chave da eleição de Bolsonaro e um dos tentáculos do próprio Bolsonaro.
"Só as pressões sociais poderiam conduzir a retirada de Paulo Guedes do cargo de ministro da Economia."
Enquanto milhares de brasileiros passam necessidade, passando fome ou sofrendo problemas no emprego, alguns poucos lucram com a desvalorização da moeda brasileira. Tal contradição entre esses dois grupos vai trazer um grande ar de descontentamento da população, avisa o especialista, e ainda pode prejudicar a imagem do próprio governo Bolsonaro.
Reputação de Paulo Guedes
Os investidores sempre olharam para Paulo Guedes com bons olhos. É uma das figuras que são pouco criticadas em termos técnicos: sua estrutura econômica neoliberal e privatizadora não é questionada pelo mercado.
E agora temos um grave conflito de interesses que pode revelar que um agente tão importante no cargo do Ministério da Economia pode ter agido em função não dos interesses nacionais, mas de interesses estrangeiros, esclarece Ramirez.
Caso de Roberto Campos Neto
Em relação ao caso de Campos Neto, é preciso entender que o presidente do Banco Central tem muita responsabilidade, sobretudo no controle da taxa de juros.
© REUTERS / Ueslei MarcelinoPresidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, durante cerimônia no Palácio do Planalto em Brasília, 24 de fevereiro de 2021
Presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, durante cerimônia no Palácio do Planalto em Brasília, 24 de fevereiro de 2021
© REUTERS / Ueslei Marcelino
Existe uma equação econômica: quanto mais cai a taxa de juros, maior a tendência de aumento do dólar. E o momento curioso aqui é o seguinte: desde que Bolsonaro assumiu a presidência, a taxa de juros brasileira vem caindo muito do ponto de vista histórico.
Há 20-25 anos, Fernando Henrique Cardoso, com o lançamento do Plano Real, aumentou a taxa de juros e estabilizou a moeda. Bolsonaro promove o movimento inverso: reduz a taxa de juros radicalmente e o valor do dólar dispara.
Então, os investidores começam a especular em torno da desvalorização da moeda nacional e muita gente ganha disso, explica o professor.
Isso também demonstra que o presidente do Banco Central age nos interesses do mercado, tal como o ministro da Economia.
Paralelos com Panama Papers
Ainda não é fácil dizer quais serão as consequências de longo prazo da publicação do Pandora Papers. Conforme o especialista, quase tudo depende da cobertura da imprensa.
É que muitos proprietários dos meios de comunicação também possuem contas em offshores. Talvez, para não prejudicar a si mesmos, cheguem a fazer "um tipo de sensacionalismo" como fizeram com Lula, por exemplo, quando foi divulgado o Panama Papers, também escandaloso, que envolveu vários políticos brasileiros.
Naquele momento, as mídias brasileiras se focaram mais na prisão de Lula e quase ignoraram a publicação. No caso do Pandora Papers aconteceu algo parecido. O relatório foi divulgado no final da semana, no dia seguinte, segunda-feira (3), o Facebook e WhatsApp pararam de funcionar e basicamente os grandes meios de comunicação só falaram disso, "esqueceram" do caso de Paulo Guedes. "Então, uma cortina de fumaça que esses grandes meios de comunicação acabam criando por aqui também."
"A depender da nossa imprensa tradicional, é muito difícil que esse caso seja levado adiante com muita gravidade", concluiu.