Situada a quase 70 quilômetros da capital administrativa da África do Sul, Pretória, a pequena comunidade de africâneres, Kleinfontein (Pequena Fonte, em português), costuma suscitar acusações de "racismo dos brancos" na mídia internacional e até serve como objeto de vários mitos sobre a "intolerância" dos residentes locais para com os representantes de outras raças e crenças.
Origens de Kleinfontein
Logo na entrada da povoação, aparece um monumento em concreto com palavras escritas na língua africâner: "Ons God Ons Volk Ons Eie" (Nosso Deus, Nosso Povo, Nossa Propriedade).
Para mais, a entrada de Kleinfontein desfruta de seu próprio banco, serviço de entretimento (aluguel de DVDs), cafeteria e restaurante. Foi nesse ponto, após passar pelos "guardas fronteiriços", que nos encontramos com Dannie de Beer, membro do Conselho de Administração da comunidade.
Nosso guia e africâner orgulhoso, Dannie, está vestido de um casaco tirolês que lhe foi presenteado por seus amigos de Bolzano (ou Tirol do Sul), que, nas suas palavras, expressam seu apoio à comunidade africâner por eles mesmos serem uma nação dividida entre vários territórios (Áustria e Itália) ao longo dos anos.
Logo à partida, Dannie se mostra uma pessoa muito hospitaleira e pronta para responder a quaisquer perguntas que surjam, porém lamenta a quão preconceituosa costuma ser a cobertura jornalística em relação a Kleinfontein.
"Eu acho que uma das razões pelas quais Kleinfontein, o povo bôer, o povo africâner, não têm tanto sucesso é, em grande parte, a compostura da mídia, que simplesmente diz: 'É um assunto racista.' O componente cultural não recebe nenhuma atenção da mídia. Eu acolhi numerosos jornalistas aqui, estes passavam um dia inteiro comigo, falava de tudo para eles, e no dia seguinte eles lançavam um artigo dizendo 'enclave racista de brancos'…", conta Dannie ao nos propor um café da manhã típico e um copo de chá tradicional sul-africano.
Ele tem estado presente em Kleinfontein logo desde o início da comunidade, ou seja, desde o ano de 1992, dois anos antes do fim do regime do apartheid, e hoje em dia participa de administração do povoado, tem uma moradia aqui e conhece cada residente pelo nome.
"Somos um território de propriedade comunitária, isto é, a propriedade inteira pertence a uma empresa [e quando você compra imóveis aqui], se torna acionista desta empresa", esclarece Dennie.
No total, Kleinfontein ocupa 800 hectares de terras e, como assegura um dos seus fundadores, não perde a oportunidade de expandi-las quando aparecem algumas propostas de venda por perto. O povoado apareceu entre 1992 e 1993, na mesma época que surgiu a Orânia, outra comunidade de africâneres na África do Sul que até tem sua própria bandeira e moeda.
Porém, existem várias diferenças entre estas duas comunidades, nos conta Dannie.
"Começamos de modo muito diferente deles, naquele momento Mandela estava prestes a ser libertado, e não era o momento certo para um africâner fundar um povoado por si mesmo fora de Pretória. Então, deixamos estar, estava muito calmo. O desenvolvimento foi muito calmo, o marketing foi muito calmo. Não fizemos muito marketing porque não queríamos provocar qualquer alarme", relembra.
Para que africâneres precisam deste tipo de comunidade?
De acordo com Dannie, a comunidade se baseia em vários fundamentos, um dos quais é a língua materna dos residentes locais, que é o africâner. Hoje em dia, é considerado oficialmente como um dos idiomas oficiais da África do Sul, porém, está cada vez mais ausente nas estruturas institucionais e estabelecimentos de ensino.
"Os alicerces de Kleinfontein são a cultura africâner, sua herança, sua história, a língua… Somos 100% cristãos divididos, talvez, entre vários ramos do cristianismo. Eventualmente, terá dois ou três católicos", diz Dannie. "Então, o primeiro componente é a cultura."
Já o segundo componente, de acordo com o nosso guia, é o fato de os residentes locais "trabalharem para eles mesmos".
"Toda a era do apartheid pode ser resumida em que os africâneres e outros representantes da raça branca usavam os negros para fazer todo o trabalho, mas recusavam lhes conceder terras, direito de voto, etc. Aqui temos tudo exatamente ao contrário, reservamos todo o emprego para os africâneres e toda a ideia consiste em que as pessoas que cultivam a terra a possuem", afirma o interlocutor da Sputnik Brasil.
Dado que para muitos a intenção dos bôeres se concentrarem em comunidades fechadas fora das grandes cidades parece um "assunto racista" e uma tentativa de "fazer o país voltar para a época do apartheid", Dannie faz questão de esclarecer sua visão de Kleinfontein, destacando os problemas mais urgentes na sociedade sul-africana de hoje em dia.
"Nosso objetivo é de fato o mesmo — é um porto seguro para um africâner, porque na nova África do Sul a herança de Nelson Mandela não contribui para o bem-estar dos africâneres. Nos sentimos muito alienados e desligados da nova África do Sul, as leis são contra nós", desabafa. "Sou um homem branco, se eu abrir um jornal sul-africano para procurar um trabalho, vai provavelmente aparecer a chamada posição de ação afirmativa, o que quer dizer que se você é branco, não pode ganhar o emprego. Meramente pelo fato de eu ser branco. Então, é uma atitude completamente racista para com a nova África do Sul", racionaliza o entrevistado.
Segundo Dannie, passadas mais de 20 décadas do fim da segregação racial, o africâner continua sendo visto como a língua do opressor, e os falantes nativos dela são considerados na maioria dos casos como "opressores, agressores, pessoas que inventaram o apartheid".
"É por isso que os lugares como Kleinfontein e Orânia existem", explica.
Vida cotidiana em Kleinfontein
Já que Kleinfontein fica tão perto de outros povoados, é muito difícil ser economicamente ativo aqui, narra Dannie, tanto mais que as terras são de fato pouco propícias para agricultura.
"Esta é uma diferença grande entre nós e Orânia, eles são mais autossuficientes", reconhece.
Assim, os residentes da comunidade decidiram apostar mais na área de serviços e propriedade intelectual. Kleinfontein disfruta de grande número de especialistas em várias esferas que, porém, precisam viajar uns quilômetros do seu povoado para ir trabalhar em instituições por perto, pois a cidade ainda não possui uma estrutura verdadeiramente desenvolvida.
"Se trata mais de propriedade intelectual do que componentes físicos. Temos muitos engenheiros, temos muito médicos, temos cirurgiões. Temos muitos acadêmicos… No que se trata do componente agrícola, […] somos mais uma área residencial do que uma comunidade fazendeira", diz, adiantando que nesta cidade pequenina de 1.500 habitantes tem quatro neurocirurgiões de alta qualificação que trabalham em hospitais nas proximidades.
Porém, Kleinfontein parece ter lugar para qualquer bôer — embora seja pequena, se divide em bairros diferentes, uns "de luxo" e outros muito mais humildes. Os preços do aluguel aqui são acessíveis para qualquer um — um quarto custa a partir de 75 euros (mais de 320 reais) por mês e uma casa — a partir de 190 euros (mais de 820 reais) por mês.
Além disso, os residentes fazem tudo para não depender do mundo exterior em questões de energia, abastecimento de água e construção civil.
"Temos uma escola, uma prefeitura, tudo que você pode ver aqui foi construído por africâneres. A construção é a nossa indústria muito forte. Então, os africâneres, de fato, trabalham. Se você viajar pelas outras partes da África do Sul, vai ver que o trabalho fica mais para os negros", conta.
Enquanto todo o país, especialmente a Cidade do Cabo e Johannesburgo, estão vivendo uma grave crise de escassez d'água, com placas em hotéis pedindo para reduzir o tempo do banho a 3 minutos e cortes em bairros inteiros que duram vários dias, Dannie assegura que Kleinfontein nem sequer está sentindo este tipo de problemas.
"Temos por volta de 17 quilolitros por pessoa por mês. O consumo em Kleinfontein é muito baixo. Somos muito dependentes da época da chuva. Sim, temos nossas restrições próprias em relação à água […] Mas nunca tivemos cortes dela […] Agora estamos em meados do inverno, é a nossa época do ano mais seca, mas não temos nenhumas restrições. Posso irrigar o campo de rugby, encher a piscina, somos menos vulneráveis [que as cidades de fora]", pormenoriza.
Ele relembra ainda que quando Kleinfontein foi fundada, isto é, 22 anos atrás, havia consumo tão pequeno de água que os residentes até a vendiam para os supermercados mais próximos.
A Internet também é algo que faz parte integrante na vida dos bôeres em Kleinfontein. Mais que isso, eles próprios montaram sua infraestrutura para a rede.
"Produzimos Internet para as pessoas em torno de 80 quilômetros daqui, porque temos qualidade bem alta. Alguns destes aparelhos transmitem até para 100 quilômetros de distância", narra.
Evidentemente, essa política de buscar a maior autossuficiência possível tem a ver com o conceito de "Volkstaat", traduzido como "Estado do Povo" — um projeto africâner que consiste na criação de um Estado separado dentro da África do Sul.
"Nossa ideia é funcionar como se fossemos um Estado independente", diz Dannie sorrindo. "Tudo o que podemos fazer por nós mesmos, fazemos."
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