À beira de um mar de lama no trecho da zona rural de Brumadinho conhecido como Cerradão, o taxista Milton Faustino Barbosa acompanha o helicóptero do Corpo de Bombeiros içar um saco preto com uma perna encontrada pelos oficiais. Franze o cenho, aponta a câmera do celular para o céu e à Reportagem, pergunta retoricamente: "será minha irmã?".
A sexta que marcou sua vida e da qual não consegue se esquecer começou como outra qualquer. Desempregado desde meados de 2018, quando foi dispensado de uma transportadora terceirizada da Vale — fato que provavelmente salvou sua vida — Milton tinha saído de casa com o táxi que dirige para outra pessoa e do qual só fica com 30% da renda. Passava das 13h quando viu vizinhos e amigos correndo de um lado para o outro, todos desesperados com a notícia que dali a alguns minutos estamparia os jornais no mundo todo: a barragem na mina Córrego do Feijão tinha rompido.
"Eu morei 40 anos no Córrego do Feijão, só recentemente me mudei para a cidade de Brumadinho mesmo. No início a gente não imaginava a gravidade [do acidente], né? A ficha foi caindo aos poucos, mas até agora não caiu totalmente", diz, sobrancelhas caídas e expressão cansada de quem, do dia pra noite, se viu responsável por cuidar dos filhos e de mais oito parentes que agora dividem-se pela pequena casa de 40 m² comprada a prestações há poucos meses.
A história de Milton ilustra o clima geral em Brumadinho. Vários estabelecimentos estão fechados enquanto seus proprietários esperam por notícias — boas ou ruins — que nunca chegam. Não há rua em que pelo menos uma família não espere angustiada por novidades de parentes desaparecidos. Mais que números, são pais, irmãos, são filhos que jazem na lama enquanto velas e grupos de oração por eles intercedem em cada pequena igreja, em cada pequeno memorial espalhado por praças e esquinas da cidade tingida do laranja empoeirado de sua extensa zona rural, por onde circulam carros de reportagem, viaturas de polícia e comboios com militares. As preces, que nos primeiros dias clamavam pela intercessão divina em prol de possíveis sobreviventes, agora residem nos pedidos de aceitação e conforto para a dor da população.
"Eu não posso desabar, eu preciso ser o sustentáculo (sic), queira sim, queira não. Por que o impossível não pode acontecer? O que é o impossível? No bairro que eu moro aqui nós fomos vítimas de vários alagamentos, já chegou a cobrir minha casa a ponto de ficar só o telhado de fora. Então essa situação dramática que já vivemos tantas vezes foi fortalecendo a gente", conta, firme.
Mas é só quando todos os filhos saem de casa, em mais uma via crucis pelos vários postos de informações instalados na cidade é que Mário Pururuca deixa cair a máscara de aparente força. Chora, primeiro timidamente e depois sem esconder a tristeza. Diz ser a primeira vez que se permite chorar desde o acidente e aos poucos, parece aceitar as chances remotas de ver Alexis com vida.
"Enquanto você não tem um último 'visual' [do corpo], eu só consigo lembrar do último dia que eu o vi no supermercado, ele brincando de esconder de mim esperando eu perguntar por ele (…). Mas é muito difícil e a cada boato de gente que viu ele correr pro mato, que viu ele subir o morro e escapar na hora do acidente, a gente fica pensando se tem chance mesmo ou se a gente começa a aceitar", diz, com a fala entrecortada por lágrimas.
No cemitério, um índio missionário responsável pelo último adeus
Natural de uma tribo Tupi Guarani no coração da selva amazônica, o indígena Wellington de Souza Maia deixou a floresta para falar de Jesus. Estudando religião depois de contato com padres que visitavam a aldeia, ele abandonou seu povo e suas raízes para trás para evangelizar pelo país até fincar bases em Brumadinho onde, depois de alguns meses desempregado, foi conseguir emprego como coveiro. Já se passaram três anos desde quando pisou no cemitério Parque das Rosas pela primeira vez.
"Só na minha rua são oito desaparecidos, gente que eu via todos os dias antes de trabalhar, cumprimentava, convivia. É uma decepção muito grande [ver isso] porque a gente pensa em multiplicar, não diminuir", admite, consternado. Ele ainda não enterrou nenhum vizinho e confessa não ter se preparado para o momento. "Vai ser chocante, eu não consigo nem pensar no efeito [no psicológico] ainda".
Até lá, Wellington vai se apegando à fé, a mesma que o motivou a cruzar o país inteiro e chegar a Minas Gerais. Perguntado se o episódio abala a crença dele em um deus, o índio diz que só o fez reforçar. "A gente vê os sepultamentos e fica angustiado pelas famílias, mas tenho a certeza do arrebatamento e que vou encontrar todos eles em breve é maior", diz, não sem um sorriso em resposta a um dos 90 padres da Arquidiocese em Belo Horizonte, no dia posicionado no cemitério para oferecer conforto aos que poderiam chegar.
Wellington, porém, tem evitado o contato próximo com os conhecidos com familiares desaparecidos. Sabe que sua profissão é um constante lembrete sobre a inevitabilidade da morte e diz preferir "respeitar o espaço deles".
Revolta com a Vale
Enquanto aumenta a contagem de mortos e flutua a de desaparecidos, além da dor, outro sentimento une os habitantes de Brumadinho: revolta. Quando se menciona a Vale — que não faz muito tempo propôs aos moradores do Córrego do Feijão asfaltar a via de terra que liga a comunidade ao distrito de Casa Branca em troca do apoio local pela construção de mais uma barragem que substituiria a estrutura que viria a ceder —, ouve-se com frequência "irresponsabilidade", "negligência", "raiva", "desilusão". "Ódio".
"A pior dor é a dor da incerteza e não tem remédio pra isso. Eu fico me perguntando 'onde está meu filho'? Tá na lama da ganância e do despreparo dos dirigentes da empresa. Aquilo [o rompimento] foi uma coisa premeditada, a catástrofe estava escrita e desenhada (…). Cinco [engenheiros] presos foram poucos, tem que pegar essa corja. Se eles tinham consciência que poderia acontecer e se deixaram comprar por laudos falsos, a preço de miséria de R$10 mil ceifaram 300 vidas. Tem que apodrecer e não falo por revolta de momento não, tô falando como cidadão brasileiro e brumadinense", ressente-se.
Já Milton ainda se vê às voltas sobre o que fazer de agora pra frente. Ele afirma ter sido forçado a conversar com oito funcionários da mineradora antes de conseguir dois colchões de solteiro que permitissem aos parentes desabrigados — sobretudo as sobrinhas, agora possivelmente órfãs — dormirem na casa dele. Passado o choque inicial da tragédia, o taxista espera que a Vale nunca mais volte a operar no município e prenuncia: "isso é algo que Brumadinho nunca mais vai esquecer, daqui a 30, 40 anos vão falar do que fez a Vale para os filhos e netos" dos que ficaram.