25 de abril: por que fim da ditadura em Portugal não pode ser comparado a nenhum outro

No dia 25 de abril de 1974, centenas de militares marcharam por várias regiões de Portugal em uma ação coordenada que instaurou a democracia no país depois de 48 anos de ditadura. A data da chamada Revolução dos Cravos é celebrada desde então como "o dia da liberdade" e é motivo de orgulho nacional.
Sputnik

Na noite do dia 24 de abril de 45 anos atrás, o capitão Delgado Fonseca ouviu pelo rádio a canção "E Depois do Adeus". Era o primeiro sinal para que as tropas ficassem a postos. "Na época, eu era diretor do curso de operações especiais em Lamego. Quando saiu a senha da revolução, às 11 da noite, neutralizei o comandante e marchei para o Porto com uma companhia reforçada com armas pesadas. Chegamos lá às seis da manhã", conta o ex-militar à Sputnik Brasil.

Delgado Fonseca
Mais tarde, passando um pouco da meia noite do dia 25 de abril, veio o segundo sinal, também em forma de melodia. A canção "Grândola, Vila Morena" foi tocada, dando a confirmação para que cada tropa avançasse. "A missão inicial era tomar o quartel da polícia política, a PIDE, mas quando chegamos tinham falhado alguns camaradas e então nos pediram para ir reforçar na cidade. As minhas forças acabaram por ter que ocupar todas as rádios e, portanto, foi a força principal que atuou no Porto", relembra o ex-capitão.

Militares em Lisboa
As articulações se repetiram em outras regiões e avançaram para os momentos mais significativos em Lisboa, onde acabaram refugiados dentro de um quartel o então chefe do governo, Marcelo Caetano, e outros nomes do primeiro escalão ditatorial. Já era dia de 25 de abril de 1974 quando, depois de pressionado pelos militares e pelo povo — que somavam milhares de pessoas nas ruas da capital — Caetano se rende e negocia os termos para sua saída do poder.

Quatro décadas de ditadura

Em 1974, Portugal estava no seu 48º ano seguido sob o comando de um governo ditatorial. "O que aconteceu nesse dia 25 de abril é que cai a ditadura que se iniciou primeiro como ditadura militar em 1926, transforma-se numa ditadura civil em 1930 e desde aí vivíamos em ditadura até o dia em que um movimento de capitães decide tentar derrubar o regime e consegue fazê-lo com sucesso, conduzindo à saída do ditador, que era formalmente o primeiro-ministro. Ele sai do país e abandona o poder e, portanto, é uma transição à democracia relativamente pacífica, embora de caráter de ruptura revolucionária", explica à Sputnik Brasil Filipa Raimundo, pesquisadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Quase cinco décadas de opressão tinham impacto em várias esferas da vida dos portugueses. "Era um regime autoritário de direita, mas não era particularmente violento se pensarmos nos regimes autoritários que marcaram o século XX na Europa e afora. Mas era um regime que assentava em repressão em várias medidas, na perseguição aos seus opositores, censura. Portugal era um país atrasado e economicamente pobre, um pouco isolado a nível europeu e, ao contrário do resto dos países europeus, é um país que não fez ainda a descolonização e que mantém colônias na África que estão em guerra", contextualiza a pesquisadora.

Militares em Lisboa
Origem da revolução

Em 1974, Portugal vivenciava a era das guerras coloniais. "Havia corpos militares em todas as colônias portuguesas, mas os palcos de guerra mais importantes e com mais soldados eram a Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, com mais confronto direto. Mas havia militares em Cabo Verde, em São Tomé, Macau, Timor. Portugal tinha um império enorme na época", conta à Sputnik Brasil o historiador Luís Farinha.

Luís Farinha, historiador e diretor do Museu do Aljube
Os movimentos independentistas eram contidos com o envio de centenas de militares de Portugal para as colônias ao longo de anos. As tensões crescentes nos locais de maior conflito deram origem ao Movimento das Forças Armadas — MFA, em 1973, formado em sua maioria por capitães que buscavam o fim dos confrontos. "Foi uma consequência natural das guerras, que estavam perdidas", lembra o ex-capitão Delgado Fonseca, que chegou a comandar 600 homens em Angola. "Estávamos à beira de uma derrota geral nas colônias e nem os generais nem o poder político arranjavam solução para aquilo, se recusavam. Tivemos que ser nós, os jovens comandantes", complementa.

"Ao fim de 13 anos de guerras coloniais, chegou-se à conclusão que só havia uma solução política e, portanto, fizeram um golpe militar para derrubar o regime e para alterar a situação política que era inevitável", explica o historiador Luís Farinha.

25 de abril de 1974

Depois de uma primeira tentativa frustrada, no mês de março, as lideranças do MFA conseguiram por em prática um plano bem coordenado por todo o país, começando no fim da tarde do dia 24 de abril. "A operação militar foi simples e todos reagiram bem dentro de uma estrutura nacional. Todo mundo se mexeu na mesma hora. Foi um golpe militar simples, barato e fácil", conta o ex-capitão Delgado Fonseca.

As ações consistiam em deter comandantes e ocupar quartéis e outras instalações ligadas ao regime ditatorial, como as sedes da PIDE, órgãos de censura e da imprensa partidária. Também foram ocupadas sedes de rádios, televisão e o aeroporto.

Delgado Fonseca
Antes do amanhecer do dia 25, os objetivos estavam alcançados. O governo tentou reagir, mas os oficiais se recusaram a lutar contra o movimento. "Foi uma revolução muito curiosa, porque o povo estava muito atrasado politicamente. As forças políticas que existiam estavam clandestinas, que era o Partido Comunista Português, e mais nada. O Partido Socialista tinha acabado de se formar na Alemanha e só tinham quadros fora. Aqui havia o partido do poder, de forma que foi realmente o povo na rua que mexeu as coisas. O bonito começou quando a população se integrou e começou a revolução a sério", lembra o ex-capitão Delgado Fonseca.

Com o raiar do sol no dia 25, e já informado pelos pronunciamentos do MFA via rádio, o povo foi para as ruas acompanhar a movimentação. "Foi inesperado, somente poucas pessoas tinham noção do que ia acontecer. Às oito da manhã decidi não ir para o emprego e ir para a cidade baixa, onde já tinham acontecimentos importantes", conta o historiador Luís Farinha.

É na chamada "baixa de Lisboa" que fica o Quartel do Carmo, onde se concentraram o primeiro-ministro Marcelo Caetano e demais membros do governo. Um dos momentos mais emblemáticos da ação é a movimentação no Largo do Carmo das tropas comandadas pelo capitão Salgueiro Maia, que virou o símbolo da resistência. Maia era membro da comissão coordenadora do MFA e, em 25 de abril, liderou um cerco de tanques que ocuparam o Terreiro do Paço. Em seguida, moveu a tropa para o Largo do Carmo, de onde só saiu ao fim do dia, escoltando Marcelo Caetano para o avião que levaria o ditador para o exílio.

Salgueiro Maia no Largo do Carmo
Ao longo das operações, não houve conflitos violentos. "Tendo em conta que é um movimento revolucionário, vale a pena destacar o carácter relativamente pacífico", ressalta a pesquisadora Filipa Raimundo. A Revolução dos Cravos contabiliza quatro mortos e 45 feridos, resultado do tiroteio promovido por membros da PIDE depois de se verem sem saída já na noite do dia 25 de abril.

45 anos depois

Com a saída de Marcelo Caetano, o governo foi entregue à Junta de Salvação Nacional, que faria a transição de volta à democracia. "Mantivemos as portas da liberdade abertas para o povo se expressar. Tínhamos um programa logo de entrada que era muito claro: descolonizar, acabar com a guerra e substituir tudo o que era poder político", conta o ex-capitão Delgado Fonseca. "Estava prevista a criação de uma constituição dentro de um ano, o que aconteceu. Depois houve eleições em 76 e o regime foi-se institucionalizando. Os partidos políticos, ainda fracos, quiseram que os militares ficassem no conselho da revolução ainda a trabalhar. Ficaram ainda seis anos", finaliza.

Com o fim da ditadura, também se extinguem os órgãos de punição e censura, sindicatos são legalizados, líderes de oposição retornam do exílio e presos políticos são soltos. "Em Portugal, o que se passa é um processo de ajuste de contas imediato, que implica julgamentos dos membros da polícia política, afastamento do serviço público de pessoas que eram consideradas aliadas do regime. São retirados os direitos políticos também a uma série de pessoas que participaram do funcionamento do regime. É uma abordagem muito diferente daquela que se passou no Brasil", analisa a pesquisadora Filipa Raimundo.

Para a pesquisadora, as diferentes experiências na forma de punição dos envolvidos nos regimes ditatoriais em Portugal e no Brasil podem ser analisadas sob uma nova perspectiva acadêmica. "Quando se olha agora para a situação do Brasil, em que há questionamento sobre se, de fato, houve ditadura, que é forte, liderado inclusive pelo atual presidente, regressamos a este debate sobre em que medida é que a ausência de legitimação do regime autoritário e a dimensão da justiça contribuem para isso. O fato de haver um processo de ajuste de contas com medidas punitivas direcionadas contra aqueles que cometem crimes durante uma ditadura ajuda a deslegitimar esse regime e deixar perante a opinião pública clara a ideia de que há um contraste significativo entre o que é uma democracia, o que é uma ditadura, e que a democracia não tolera esse tipo de crimes", analisa.

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Tanque em Lisboa.
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Salgueiro Maia à frente da tropa.
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Salgueiro Maia.
45 anos depois, o dia 25 de abril continua sendo celebrado em Portugal com programações que envolvem, entre outras ações, desfiles, shows, recitais de poesia, e exposições espalhadas por todo o país ao longo do mês. Atualmente, o historiador Luís Farinha dirige o Museu do Aljube, equipamento que funciona no prédio que antes abrigou uma das prisões do regime ditatorial.

No dia 25, o museu realiza uma recolha de objetos e testemunhos para enriquecer o acervo, que conta a história dos períodos de resistência em Portugal. "Este é um lugar de memória democrática, porque aqui estiveram presos de todas as famílias políticas, dos republicanos, socialistas, dos comunistas à extrema-esquerda, dos católicos aos sindicalistas", afirma o diretor. Para Luís Farinha, o 25 de abril segue vivo justamente pelo que não se pode esquecer: "esta gente toda lutava pela liberdade."

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