Como cozinheiras venezuelanas conseguem contornar sanções mais duras dos EUA

Nery combina a sombra de olhos verdes com o seu lenço amarelo das Cozinheiras da Pátria. Ela tem 45 anos e trabalha há quatro anos nos fogões do Colégio Peru em Lacroix, que é uma das instituições de Caracas.
Sputnik

Os bairros da capital venezuelana são outra coisa. O de Lídice, onde está localizado o colégio de Nery, se gaba por estar ao pé da Ávila, a montanha que rodeia a cidade, e dá um alívio aos pulmões da poluição irremediável. Viver no bairro é contornar a mídia institucional e fazer pátria com o molho caribenho que Nery e suas companheiras administram todos os dias, desde as 7 da manhã, na cozinha do Colégio Peru, como feministas de uma vida em resistência.

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As Cozinheiras da Pátria são um grupo de mais de 60.000 mulheres espalhadas por toda a nação. Elas nasceram como quase todas na Venezuela: espontâneas, para ajudar, para dar uma mão, para alimentar aqueles meninos e meninas que comem mais ou menos em casa, mas que, na escola, não vão perder o almoço.

No início, quando começaram com Chávez ainda no poder, as mães iam às escolas de seus filhos e filhas e cozinhavam para que eles se empenhassem nos estudos. A cultura é perigosa, a cultura pertence a todos, a cultura é revolucionária. As cozinheiras sabem disso, e é por isso que colocam suas almas e corpos nesses fogões intransponíveis.

Hugo Chávez ainda estava vivo quando nasceu o programa Cozinheiras da Pátria: hoje, quase seis anos depois da morte de Chávez, é ainda mais importante

A princípio, Nery diz à Sputnik Mundo que não cobravam nada. "Não tínhamos salário nem benefícios de nenhum tipo", diz ela. Mas a iniciativa das mães corajosas foi reconhecida por Hugo Rafael e desde então elas são conhecidas como as Cozinheiras da Pátria, e começaram a ser remuneradas pelo estoicismo: alimentar o futuro da pátria.

Fazendo o bem sem querer chamar atenção, elas são responsáveis por alimentar milhares de crianças todos os dias em todo o país. Elas cozinham almoço "com o que quer que seja" em escolas e colégios públicos venezuelanos.

Nery, orgulhosa de ser uma Cozinheira da Pátria, diz que, embora a comida seja escassa, de alguma forma conseguem alimentar os jovens venezuelanos no colégio Peru em Lacroix

Os alimentos são fornecidos pelo Ministério da Alimentação e a cada 15 dias são distribuídos. Nery, que antes de cozinhar trabalhava como assistente de enfermagem, explica que elas cozinham com o que tem, que ultimamente, "por causa da guerra econômica", geralmente não é muito ou muito variado. "Mas garantimos sempre o almoço. Se não há comida, inventamos onde conseguir ou pensamos em novas receitas com o que vem do ministério", revela.

O Colégio Peru de Lacroix tem 1.050 alunos e oferece duas refeições por dia: uma às 11h30 e outra uma hora depois. Na cozinha de Nery trabalham nove pessoas. Oito mulheres e um homem, que se chama Brian e tem 20 anos. Ex-aluno e sobrinho de cozinheiros, Brian sempre quis trabalhar com comida. "Quando estudava, queria ser como elas", diz ele.

Na equipe das Cozinheiras da Pátria do Colégio Peru de Lacroix há nove pessoas que trabalham de sol a sol para alimentar os estudantes

Os nove dividem as tarefas e escolhem cardápio diariamente. Hoje há macarrão com carne moída, ontem foi oferecido arroz com feijão preto, amanhã eles acreditam que vão preparar carne novamente, a mais cara do mercado, a filha favorita da hiperinflação. Lilibet Montilla trabalha na mesma cozinha há três anos e meio. Ela não usa um lenço amarelo como o de Nery na cabeça, mas uma touca de plástico transparente. É como uma touca de banho. Vale tudo. Lilibet tenta lavar a louça suja mesmo sem ter água.

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"Em Caracas temos problemas com o abastecimento de água, não é algo que nos surpreenda, estamos acostumados a resolver esse tipo de situação. Quando a água não chega à cozinha, vamos à escola ao lado, que normalmente tem água todos os dias, e enchemos grandes baldes para trabalhar. É assim que resolvemos", diz ela à Sputnik Mundo.

Nery e Lilibet explicam que seus talheres são sua arma e que nunca deixarão de cozinhar, porque é uma maneira de permanecer fiéis a uma Revolução com a qual é impossível não se desencantar às vezes, em dias baixos, em dias em que o caminhão chega meio vazio. Mas o seu trabalho é duplamente recompensador.

Brian, ex-aluno do Colégio Peru de Lacroix, sonha em se tornar um chef internacional; por enquanto, ajuda as Cozinheiras da Pátria a alimentar os jovens que, como ele, passaram pelos corredores do centro educativo

Por um lado, alimentam espíritos de carne e osso em crescimento, embora o mundo insista em mostrar as prateleiras vazias dos supermercados venezuelanos em fotografias perfeitamente enquadradas para fazer a vontade de outras nações. Por outro lado, elas se sentem como mães e mentoras de meninos e meninas que, às vezes, precisam delas não só para se alimentar, mas também para contar-lhes sobre suas tristezas e glórias diárias.

Crescer em um país em guerra não é tarefa fácil. A guerra expressa pelas cozinheiras é a que mantém a Venezuela em uma incerteza. Em um círculo prejudicial do bloqueio econômico que começou em 2015 com a doutrina Obama, que declarou o país caribenho uma "ameaça incomum e extraordinária" aos Estados Unidos, e começou a se materializar em agosto de 2017 com as primeiras sanções de Donald Trump.

A comida pode ser escassa, mas os alunos nunca vão parar de comer: essa é a missão das Cozinheiras da Pátria

O próprio Departamento de Estado dos EUA reconheceu no dia 24 de abril, em um relatório que mal durou um dia em seu site, que o governo dos Estados Unidos aplicou 150 medidas coercivas unilaterais contra a Venezuela que atentam não só contra os funcionários do governo de Nicolás Maduro, mas contra toda a sociedade civil e a vida cotidiana de seus habitantes.

A precarização da vida cotidiana é o objetivo de um bloqueio econômico e financeiro que, segundo dados oficiais do governo venezuelano, significou uma perda de 130 bilhões de dólares entre 2015 e 2018. Dólares que o país usaria para comprar remédios e alimentos como os que Nery e suas companheiras usam todos os dias.

Há dez anos, antes da queda do preço do petróleo bruto, era mais barato importar qualquer tipo de alimento do que produzi-lo na Venezuela. É a maldição do ouro negro: a renda do petróleo, os petrodólares, as moedas obtidas a uma taxa de câmbio preferencial para comer o mundo de outrem e as suas próprias entranhas.

Em um dia há arroz com feijão, em outro – macarrão com carne moída. As Cozinheiras da Pátria preparam o que tem, o importante é alimentar as crianças

A Venezuela nasceu, cresceu e viveu até hoje sem produzir praticamente nada do que consume, exceto os derivados de suas maiores reservas certificadas do mundo. Mas a história mudou vertiginosamente e as sanções dos EUA mantêm 5,47 bilhões de dólares venezuelanos bloqueados em bancos internacionais, enquanto o país não tem acesso a crédito.

A dívida não pode nem ser financiada nem paga, sem conta na impossibilidade de realizar qualquer operação financeira. Estar fora do sistema significa morrer sofrendo gradualmente até espremer a última gota de sangue preto e vermelho. Há poucos dias, a Reuters anunciou sanções contra a CLAP (Comissões Locais de Abastecimento e Produção), o sistema de distribuição de caixas de alimentos subsidiadas pelo governo que alimentam, mal ou bem, 6 milhões de famílias na Venezuela.

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Os EUA preparam "sanções e acusações criminais contra autoridades venezuelanas e outros suspeitos de usar um programa de ajuda alimentar administrado pelo Exército para lavar dinheiro para o governo do presidente Nicolás Maduro", afirmou a Reuters. Não havia fontes concretas. Apenas "fontes familiarizadas com o assunto".

Não seria o primeiro ataque a caixas de comida. Em 19 de maio, a liderança da CLAP denunciou que dez dos doze navios que transportam comida para o país também foram sancionados, então o que costumava levar um mês para chegar agora pode levar até três meses. O mesmo vale para as transações internacionais que o governo venezuelano faz para pagar por esses produtos, a maioria deles importada do México.

O Colégio Peru de Lacroix tem a marca de Simón Bolívar marcada, não só no espírito de seus alunos, mas também nas paredes

Como é impossível fazer pagamentos internacionais, as contas devem ser pagas através de terceiros, e o que costumava funcionar em 20 dias pode levar até 60 dias. Bem-vindo aos jogos da fome. Como diz Nery, "se não temos, inventamos".

"Se os legumes não chegarem no caminhão do Ministério, nós os cultivamos e os vizinhos sempre nos ajudam. Trazem comida, trazem o que podem, para que a cozinha do colégio não pare", diz. A Venezuela está mudando rapidamente. Há mais produtos venezuelanos nas prateleiras dos supermercados e provavelmente também se tornarão maioria nas caixas da CLAP se as últimas ameaças de sanção se materializarem.

Uma forma de lutar contra a guerra econômica na Venezuela é alimentar os jovens que serão o futuro da Venezuela contra todas as probabilidades

Os pátios das casas são usados de forma diferente. Se houver um pedaço de terra, ele pode ser usado para cultivar qualquer coisa. São tempos de roubo, crise e saques, onde também se reinventa o conceito de pátria, como os fogões das cozinheiras, que não se apagam nem mesmo nas férias escolares, quando as escolas permanecem abertas para alimentar os que governarão uma Venezuela futura, mesmo que ainda não perguntem sobre ela.

É o futuro que hoje estuda, que não pensa na guerra por ser jovem demais, e que se adapta a uma realidade forçada por outras nações.

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