Itaipu permite adjetivos. Até 2012, era a maior hidrelétrica do mundo e segue sendo a usina com maior produção de energia no planeta.
A Itaipu binacional foi criada em 1973 sob tratado dividindo a produção elétrica igualmente. À época, Brasil e Paraguai estavam em regimes militares sob comando de Ernesto Geisel e Alfredo Stroessner. Pelo tratado, Assunção vende a Brasília o que não consome, que por sua vez retém parte dos valores devido às dividas de construção.
Mas recentemente o Brasil defende que o Paraguai tem omitido o verdadeiro consumo energético para pagar menos pela energia excedente produzida. Sob o tratado, o Paraguai informa anualmente a quantidade de energia que irá necessitar e caso haja mais demanda, o valor pago diminui.
Para se ter uma ideia, o Paraguai consumiu 1.717 MWmed (megawatts médios) em 2018 vindos de Itaipu, segundo dados da própria usina. Em 898 MWmed, o Paraguai pagou US$ 43,80 por megawatt-hora. Já os 53% restantes do consumo, 819 Mwmed - sob valor especial sob tratado para a produção excedente - saíram por US$ 6 cada megawatt-hora.
Pensando em aumentar o valor pago pelos paraguaios, em 24 de maio Brasil e Paraguai fizeram um acordo secreto, aumentando gradualmente a declaração de energia paraguaia até 2022. Em 1º de agosto deste ano, o senado paraguaio cancelou o novo acordo binacional e a oposição acusou o presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, de traição, ameaçando-o com um impeachment.
"Uma das principais atividades econômicas do Paraguai é a produção de energia elétrica e a venda dessa energia para os seus vizinhos - para o Brasil e para a Argentina. Então isso é extremamente importante para a economia paraguaia e qualquer tema que envolva esse tipo de acordo internacional com Brasil e Argentina tem potencial também para se tornar uma crise política grave no Paraguai", disse em entrevista à Sputnik Brasil o pesquisador da UERJ, Maurício Santoro, especialista em América Latina.
Itaipu é considerada um símbolo nacional no Paraguai e gera cerca de 90% da energia elétrica consumida no país. O acordo secreto com o Brasil aumentaria em até US$ 200 milhões por ano os custos da energia paraguaia.
"O problema do acordo atual é que houve uma falta de transparência muito grande dos negociadores paraguaios com a sua própria sociedade. E a opinião pública paraguaia ficou indignada. Achou que o acordo não foi bem feito, que ele prejudicava os interesses paraguaios e isso gerou uma crise de confiança com o governo que quase levou ao impeachment do atual presidente", afirmou Santoro, que também explica que o Brasil pode gastar até R$ 1 bilhão sem o acordo.
A força de uma hidrelétrica contra o presidente
A ameaça a Benítez veio também da população, que foi às ruas de Assunção contra o presidente. O escândalo revelado em 24 de julho já derrubou o embaixador do Paraguai no Brasil, Hugo Caballero, o chanceler paraguaio, Luís Castiglioni, e o presidente da Administración Nacional de Eletricidad (ANDE), a estatal energética do país, Pedro Ferreira.
"Itaipu é importantíssima para a economia paraguaia e também é um símbolo das relações exteriores do país. Muito mais do que ela para o Brasil. É diferente do caso brasileiro em que Itaipu é responsável por cerca de 20% da energia elétrica consumida no Brasil. É um percentual grande, é a maior usina do país, mas ela não tem o mesmo peso político e econômico que tem para o Paraguai", afirma Santoro.
"Ele tem que provar que está defendendo os interesses paraguaios e a atuação durante a primeira negociação foi realmente muito ruim. Um ponto essencial foi a falta de transparência, foi essa falta de comunicação. Isso é imperdoável para uma disputa muito séria", ressalta o pesquisador da UERJ.
A mesma tensão entre os países é afirmada pelo pesquisador Eduardo Heleno de Jesus, professor de Relações Internacionais da UFF, que acredita também que a situação impõe “maior tensão sobre o presidente Benítez".
"A influência política de Itaipu no Paraguai é muito grande. E como o acordo [com o Brasil] na visão dos políticos paraguaios lesou os interesses nacionais, deu margem à tentativa de fazer um processo de impeachment", afirmou o especialista da UFF.
O partido de Benítez, o Colorado, é o principal partido paraguaio nos últimos 70 anos - inclusive no período da ditadura militar - conforme explica à Sputnik Brasil o pesquisador Eduardo Heleno de Jesus, que também afirma que disputas internas no partido poderiam dar força a um processo de impeachment.
"Mario Abdo Benítez tem uma história que aproxima ele do Bolsonaro. Primeiro, o pai dele fez parte da ditadura Stroessner. E a ditadura Stroessner é conhecida por ter uma forte ligação dos militares com o partido Colorado. Então, de certa maneira, a campanha do Marito [Benítez] foi muito identificada com os valores que o Bolsonaro usou na campanha aqui no Brasil", afirmou Eduardo Heleno de Jesus, em entrevista à Sputnik Brasil.
'Não posso fechar algo contrário ao meu país'
Na manhã da terça-feira (6), o diário paraguaio ABC Color, divulgou conversas particulares que mostram que o presidente paraguaio sabia há meses do acordo com o Brasil e que o governo brasileiro pressionou Assunção.
As conversas mostram que em março de 2019, o presidente Benítez já pressionava Pedro Ferreira presidente da ANDE, a estatal energética paraguaia, e que Benítez chegou a dizer a Ferreira que “ao negociar se sacrificam posições e algumas vezes até princípios”.
Political crisis continues in Paraguay. Protestors demand impeachment/resignation of President and Vice-President after discovery of government's "treasonous" secret energy deal with Brazil. #JuicioPolitico#Itaipúpic.twitter.com/YhDUuQLLNF
— William Costa (@Will_j_costa) August 4, 2019
Pedro Ferreira chegou a pedir a Benítez que se fosse “negociada sua cabeça” ao invés da ANDE e que não poderia “fechar algo contrário” ao Paraguai com o Brasil.
Benítez optou que as negociações fossem feitas de forma secreta com o objetivo de não atiçar a opinião pública e facilitar os termos do acordo.
Paraguai pode retaliar no acordo Mercosul-UE?
Uma das preocupações levantadas pelo impasse é de que o parlamento paraguaio use acordos comerciais como o Mercosul-União Europeia para pressionar o Brasil.
"Essa possibilidade existe. Realmente nós poderemos ter o Paraguai pressionando o Brasil na questão de Itaipu ameaçando algum tipo de retaliação na questão do acordo Mercosul União Europeia", afirma Santoro, especialista na questão.
Apesar disso, o pesquisador enxerga essa possibilidade como algo remoto.
"Não acredito que vá chegar a esse ponto. Acho que o Brasil tem uma percepção de como o sistema de Itaipu é sensível no Paraguai e tem mostrado uma disposição bastante ampla em ceder, em aceitar dialogar. O país entende que há uma relação política estratégica com o Paraguai, um vizinho muito menor, muito mais frágil e que é importante de ser mantida”, conclui.
Escândalo pode chegar a Bolsonaro?
As denúncias sobre a negociação também podem chegar ao presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Segundo conversas de Whatsapp vazadas pela emissora paraguaia Telefuturo, José Rodríguez, representante jurídico do vice-presidente paraguaio, Hugo Velázquez, teria dado instruções ao presidente da ANDE, Pedro Ferreira, sobre os termos da negociação de Itaipu para beneficiar a empresa brasileira LEROS, que explora jazidas de diamante e nióbio no Brasil.
Nas conversas vazadas, o assessor jurídico de Velázquez solicita a Pedro Ferreira em 5 de junho, após a assinatura da "ata secreta", uma reunião com representantes da LEROS para negociar a compra de energia excedente de Itaipu. Rodríguez afirma também que a empresa "vêm em representação da família presidencial do país vizinho".
Ainda segundo a Telefuturo, Rodríguez foi a um diretor da ANDE pedir segredo sobre a ata e citou interlocução com "o mais alto posto de mando do Brasil". A Telefuturo aponta ainda que em 12 de julho, Alexandre Giordano, suplente do senador Major Olímpio (PSL-SP), e um fundador da LEROS teriam recebido uma carta de intenção sobre o negócio.
Na segunda-feira (5), deputados do Partido Pátria Querida (PPQ) apresentaram um pedido de impeachment contra o vice-presidente Velázquez devido à atuação de Rodríguez.
Já nesta quinta-feira (8), o Senado Federal do Brasil abriu uma investigação para apurar os possíveis desvios no envolvimento da empresa brasileira, supostamente vinculada aos Bolsonaro e a Alexandre Giordano, suplente do senador Major Olímpio (PSL-SP).