O número de queimadas na Floresta Amazônica brasileira é o maior dos últimos cinco anos. Levantamento do Instituto de Pesquisas Ambiental da Amazônia (IPAM), com base em dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), indica que foram registrados 71.497 focos de incêndio entre os dias 1º de janeiro e 18 de agosto deste ano, número 82% maior do que o do mesmo período em 2018.
O desmatamento também está aumentado, segundo dados de diferentes fontes. A medição realizada pela ferramenta Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), do INPE, indica que os alertas de desmatamento em julho deste ano cresceram 278% na comparação com o mesmo mês de 2018.
Após a divulgação dos dados do INPE, o presidente Jair Bolsonaro disse ter o "sentimento" de que eles estariam errados e demitiu o então presidente do órgão, Ricardo Galvão.
No longo prazo, a devastação é ainda maior. O MapBiomas estimou que de 1985 a 2018 a Amazônia brasileira perdeu uma área equivalente a 2,5 Alemanhas, foram 89 milhões de hectares desmatados.
Além de dominar as manchetes de jornais ao redor do mundo nas últimas semanas, a Amazônia também teve um pico de interesse no Google. Dados do mecanismo de busca mostram que a floresta foi mais pesquisada em agosto de 2019 do que em qualquer outro período dos últimos 10 anos.
Nos últimos meses, Bolsonaro rendeu notícias com suas análises do assunto. Ele afirmou que as pessoas poderiam comer menos e alternar os dias em que fazem cocô para preservar o meio ambiente e acusou sem provas as organizações não governamentais (ONGs) de serem responsáveis pela onda de incêndios. O presidente também disse que a questão ambiental preocupa apenas "os veganos que comem só vegetais".
"Bolsonaro foi extremamente inábil, de novo, muito inconsequente. Tem algo aí de muita imaturidade, ele tenta agir com a desinformação e mentiras quando diz que ONGs trabalham para que houvesse os incêndios", diz à Sputnik Brasil a cientista política Maria do Socorro Sousa Braga, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
A repercussão dos incêndios na web e nas ruas, onde foram registrados atos em defesa da Amazônia, não é uma surpresa, avalia Braga. A professora da UFSCar afirma que a população tem diversas fontes de informação e "não se deixa enganar facilmente como em outros períodos da história política brasileira".
A posição de Bolsonaro foi contraposta pelo presidente francês, Emmanuel Macron, que acusou o presidente brasileiro de mentir sobre seu compromisso ambiental, levou a pauta da Amazônia para a cúpula do G7 e falou sobre um possível "status internacional para a maior floresta tropical do mundo".
Bolsonaro reagiu acusando Macron de ter uma "mentalidade colonialista" e recusou a oferta de 20 milhões de euros (cerca de R$ 91 milhões) feita pelo G7 para ajudar no combate ao fogo. Porém, diante das pressões nacional e internacional, o presidente brasileiro assinou uma operação de Garantia de Lei e Ordem (GLO) para utilizar homens e recursos das Forças Armadas no combate aos incêndios.
Professor da Faculdade Baiana de Direito e especialista em direito internacional, Thiago Carvalho Borges avalia que tanto Bolsonaro como Macron se excederam nas declarações e que "não há precedente" de internacionalização de área que faz parte do território de um Estado soberano.
"Parece que seria algo contrário ao direito internacional geral, pois o domínio territorial dos Estados é um direito inerente à condição soberana. Somente com a concordância desses Estados é que seria possível algum arranjo com o objetivo de administrar a região amazônica nesse plano", diz Borges à Sputnik Brasil.
Biodiversidade perdida aos montes
"Já perdemos espécies, ecossistemas e comunidades que a gente não vai sequer conhecer por causa desse fogo", diz a mestre em ecologia Nurit Bensusan à Sputnik Brasil.
Autora de livros sobre biodiversidade, Bensusan também ressalta que cada trecho da floresta perdido pode ser insubstituível: "A Amazônia é conjunto de paisagens e ecossistemas diferentes, não é bem assim 'ah, queimou aqui, mas tem mais ali na esquina'. As partes que queimam são diferentes das partes que não queimaram, a floresta é diversa, não é um conjunto igual."
O aumento da devastação na maior floresta tropical do mundo pode ser explicado em partes por uma "atmosfera anticiência" na gestão Bolsonaro, diz Bensusan.
O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, questiona o aquecimento global e já escreveu em seu blog que existe uma "ideologia da mudança climática, o climatismo", cujo objetivo seria "sufocar o crescimento econômico nos países capitalistas democráticos e favorecer o crescimento da China".
"Você pode negar o que quiser, pode dizer 'eu me recuso a acreditar que o Papai Noel não existe'. Boa sorte, o Papai Noel não existe, então os termômetros não deixam de aumentar, porque as pessoas não acreditam em aquecimento global, a diversidade biológica não deixa de ser extinta porque você não acredita no valor dela", diz Bensusan.
Bolsonaro chegou a afirmar durante a campanha que iria retirar o Brasil do Acordo de Paris, assim como Donald Trump fez com os Estados Unidos, mas depois recuou. Assinado por 195 países, o Acordo de Paris é o maior esforço global para tentar conter as mudanças climáticas. O tratado tem como objetivo limitar o aquecimento global em até 2 graus Celsius, preferencialmente em 1,5 grau Celsius, na comparação com os níveis pré-industriais.
O planeta já aqueceu um grau Celsius nas comparação com o século XIX e o mês de julho de 2019 foi, possivelmente, o mais quente da história, segundo a Organização Meteorológica Mundial.
Previsão do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) prevê que 8% das plantas vão ser extintas e que 70% a 90% dos corais da Terra vão deixar de existir com um aquecimento de 1,5 grau Celsius. Se o planeta continuar no ritmo atual, diz o IPCC, o aquecimento deverá atingir 3 ou 4 graus Celsius.
Como reduzir o desmatamento?
Doutor em ecologia e pesquisador do IPAM, Paulo Moutinho participou do desenho de uma política pública para a preservação das florestas que hoje é utilizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 65 países.
O REDD (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal ou, em inglês, Reducing Emissions from Deforestation and Forest Degradation) é um mecanismo que cria recompensas para quem mantém a floresta em pé. O programa começou a ser elaborado em 2003 em uma parceria entre cientistas brasileiros e dos Estados Unidos.
O Brasil também tem o "principal experimento no mundo sobre REDD", diz o ecologista. O Fundo Amazônia foi responsável por empregar mais de R$ 1 bilhão na preservação da floresta nos últimos 10 anos. Para ter acesso aos recursos, o Brasil precisa controlar seu desmatamento.
"Isso [Fundo Amazônia] foi desenhado pelo Brasil e pela sociedade brasileira. É algo soberano do Brasil e sem interferência externa dos doadores. Todo o fundo é gerido pelo governo brasileiro", diz Moutinho à Sputnik Brasil.
O pesquisador do IPAM ressalta que a redução do desmatamento de 2005 a 2012 registrada no Brasil mostra que a sociedade brasileira tem as ferramentas e conhece os caminhos para preservar a Amazônia — e não preservar a floresta terá um custo econômico.
"95% da agricultura brasileira depende de chuvas e essa chuva vem, em grande parte, da manutenção não só da Amazônia, mas do cerrado e de outros biomas", afirma o doutor em ecologia, que também aponta uma das ações necessárias para preservar a Amazônia: "respeitar os guardiões da floresta, como os povos indígenas, quilombolas e até os pequenos produtores familiares."
A participação da Amazônia no regime de chuvas de outras regiões é conhecido como o fenômeno dos "rios voadores". A evaporação da água gerada pelas árvores é transportada para outras partes do Brasil e cria chuvas vitais para as plantações e o consumo humano.
Professora da Universidade Federal do Acre (Ufac), Sonaira Souza da Silva também aponta o custo econômico da devastação:
"O fogo desencadeia vários níveis de problemas. No nível local, ele causa o esgotamento do solo, os agricultores notam que com as sucessivas queimadas o solo dentro de três anos já não tem o mesmo rendimento", diz a professora da Ufac à Sputnik Brasil. Ela também ressalta que sua pesquisa indica que os focos de incêndio "reduzem drasticamente" o número de árvores com valor comercial nas áreas que atinge.
Amazônia é porta de entrada do Brasil ao mundo
Dono da maior floresta tropical do mundo, o Brasil ocupa um lugar de destaque na arena internacional quando o assunto é meio ambiente. Essa liderança ficou impressa quando o Rio de Janeiro sediou, em 1992, uma das primeiras cúpulas globais sobre o aquecimento global, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92.
O evento reuniu desde o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, até o líder cubano Fidel Castro.
O professor do Departamento de Geografia e do programa de pós-graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (USP) Wagner Ribeiro relembra que durante a Eco-92 o então presidente francês, François Mitterrand, disse que a "a Amazônia é muito importante para ficar apenas sob a tutela dos países amazônicos".
Ribeiro, contudo, diz que a Floresta Amazônica é um assunto dos países da América Latina, apesar do que classifica como "desmonte" da política ambiental feito por Bolsonaro.
O professor da USP ressalta que o Brasil perde influência nas relações internacionais e está se isolando do mundo com suas posições.
"Todo esse protagonismo está sendo perdido, e evidentemente isso leva a um isolamento do país", diz Ribeiro à Sputnik Brasil. "Essa radicalização tem levado a um isolamento, o que não é bom, nenhum país se projeta no mundo de maneira isolada. Especialmente o Brasil, que não é uma potência militar ou tecnológica. O que temos de ativo é a biodiversidade."