Há algum tempo, a ideia de uma ligação entre carne vermelha e doenças, inclusive câncer e problemas cardiovasculares, vem ganhando grande popularidade entre cientistas de diferentes partes do mundo. Entretanto, há pesquisadores que ainda desconfiam da existência de uma correlação definitiva, frequentemente questionando as evidências obtidas.
Coma menos carne vermelha — esse tem sido o conselho de dieta padrão há décadas. Mas novas pesquisas sugerem que comer menos pode não torná-lo mais saudável. E os críticos estão furiosos.
Recentemente, o New York Times (NYT) publicou uma matéria sobre um novo estudo no qual alguns especialistas afirmavam que as evidências sobre os malefícios da carne seriam muito fracas para recomendar uma redução no consumo desse tipo de alimento.
Segundo essa pesquisa, liderada pelo epidemiologista Bradley Johnston, da Universidade de Dalhousie, no Canadá, as vantagens de não se comer carne seriam tão fracas que só poderiam ser discernidas quando se olha para grandes populações.
"A certeza das evidências para essas reduções de risco foi de baixa a muito baixa", afirmou Johnston, citado pelo jornal.
Apesar do caráter supostamente científico dessa "nova descoberta", as reações negativas a esse estudo foram quase imediatas, inclusive de importantes órgãos com amplo reconhecimento internacional, como a Associação Americana do Coração e a Sociedade Americana contra o Câncer. E tais críticas ganharam ainda mais força quando noticiado que o líder da pesquisa tinha antigos laços com a indústria da carne e de alimentos.
Situação no Brasil
No cenário nacional, assim como em outras partes, a questão da ingestão de carne tem sido motivo de questionamentos não apenas pelos possíveis impactos na saúde, mas também por conta de um crescimento da preocupação com o bem-estar animal e com as implicações ambientais da produção de carnes e outros alimentos de origem animal.
"A gente pode perceber, sim, que existe um interesse cada vez maior em relação ao mercado de produtos vegetarianos, principalmente veganos. Mas, se a gente for comparar com o mercado de carnes, de produtos de origem animal, ele ainda responde por uma porcentagem muito menor. Então, os interesses mercadológicos ainda se concentram na tradição do consumo de produtos de origem animal", afirma em entrevista à Sputnik Brasil o presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), Ricardo Lauriano.
De acordo com o especialista, levando em consideração a importância dessa tradição para os brasileiros, a preocupação de grupos como a SVB tem como objetivo mostrar que é possível viver bem tendo como base uma alimentação fundamentada em produtos de origem vegetal.
"Nosso posicionamento é que, sim, é possível, e pode trazer grandes benefícios. Mas sempre com conhecimento, sempre pautado em ciência, em conhecimento nutricional, para que a pessoa tire o máximo de benefícios dessa opção por uma alimentação à base de vegetais", explica.
De acordo com a pesquisadora Daniela Canella, do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), "evidências científicas de qualidade mostram que o maior consumo de carne vermelha (especialmente de carne processada) está associado a maior risco de ocorrência de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2, certos tipos de câncer e morte prematura e, portanto embasam recomendações internacionais, como da Organização Mundial de Saúde e do Fundo Mundial para Pesquisa em Câncer."
Em declarações à Sputnik, a nutricionista diz que os artigos publicados recentemente na revista Annals of Internal Medicine e noticiados pelo NYT têm aspectos metodológicos que podem ser questionáveis (como estudos de coorte não incluídos nas meta-análises, inclusão de estudos que comparam entre pessoas com pequenas diferenças na quantidade consumida, e não com pessoas que não consomem carne vermelha) e também parecem ter um problema de interpretação dos resultados:
"Dos cinco artigos publicados, três meta-análises confirmaram basicamente as evidências anteriores. Além disso, os artigos omitem a relação de autores com o Instituto Internacional de Ciências da Vida (ILSI), uma organização com fortes ligações com a indústria de alimentos. Ainda, algo que não se discute nesses artigos é a relação entre a produção de carne vermelha e sustentabilidade, mais especificamente sua relação com as mudanças climáticas. Pode parecer não haver relação direta, mas as mudanças climáticas afetam a produção de alimentos e também a saúde da população", afirma a acadêmica.
Canella explica que, no Brasil, temos um consumo muito alto de carne vermelha, mas é possível ter uma alimentação saudável comendo esse tipo de alimento, com o devido cuidado, ou não consumindo. O recomendável, segundo ela, é que as pessoas prefiram sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias à base desses alimentos, evitando os alimentos ultraprocessados.
"Alimentos ultraprocessados são formulações industriais feitas inteiramente ou majoritariamente de substâncias extraídas de alimentos [óleos, gorduras, açúcar, amido, proteínas], derivadas de constituintes de alimentos [gorduras hidrogenadas, amido modificado] ou sintetizadas em laboratório [corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários tipos de aditivos usados para tornar esses produtos mais atraentes]. No caso das carnes, aquelas classificadas como ultraprocessadas são embutidos, salsichas, hambúrgueres etc."
Ainda de acordo com a pesquisadora, carnes feitas em laboratório e propagandeadas como alternativas sustentáveis estão entre esses alimentos ultraprocessados. Elas "podem até não impactar no meio ambiente [o que não sabemos, na realidade]", mas "são péssimas opções do ponto de vista da saúde".
"O Instituto Nacional de Câncer (INCA), considerando a relação carne e câncer, fala em um consumo de 500 gramas de carne vermelha cozida por semana, o que seria o equivalente a um bife em cinco refeições na semana", acrescenta.
O que o Ministério da Saúde recomenda?
Questionado pela Sputnik Brasil sobre as controvérsias em torno da carne, o Ministério da Saúde afirmou que vem trabalhando em diferentes estratégias de promoção de uma alimentação adequada e saudável por meio de medidas educativas e sensibilizadoras, medidas informativas ao consumidor, por aumento da oferta de alimentos saudáveis, como também por meio da articulação com o setor produtivo de alimentos.
Nesse contexto, a pasta cita a segunda edição do Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, "que aborda os princípios e as recomendações de uma alimentação adequada e saudável para a população brasileira, apresentando um conjunto de informações, análises, recomendações e orientações sobre escolha, combinação, preparo e consumo de alimentos que objetivam promover a saúde de pessoas, famílias e comunidades".
Tal guia, segundo o ministério, considera o tipo de processamento a que são submetidos os alimentos antes de sua aquisição, preparo e consumo, o que condiciona o perfil de nutrientes que agregam à alimentação. Por essa razão, recomenda como base para uma alimentação nutricionalmente balanceada os alimentos in natura.
"O Guia destaca que alimentos de origem animal, como as carnes vermelhas, são ricos em proteínas de alta qualidade e em vitaminas e minerais que necessitamos. As carnes vermelhas apresentam teor elevado de muitos micronutrientes, especialmente ferro, zinco e vitamina B12, porém tendem a ser ricas em gorduras em geral e, em especial, em gorduras saturadas, que, quando consumidas em excesso, aumentam o risco de obesidade, doenças do coração e de várias outras doenças crônicas."
Em resumo, o Ministério da Saúde recomenda que os alimentos de origem animal estejam presentes de forma complementar, em pequenas quantidades, nas combinações de alimentos de origem vegetal (grãos, raízes, tubérculos, farinhas, legumes, verduras, frutas e castanhas), constituindo a base para uma alimentação adequada e saudável.
Procurado pela Sputnik para falar sobre as possíveis implicações econômicas de uma redução no consumo de carne no Brasil, país onde esse produto responde por uma parte importante do Produto Interno Bruto (PIB), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento disse que não iria comentar o assunto.
A Associação Brasileira de Frigoríficos (ABRAFRIGO), também procurada por esta agência, demonstrou interesse em se manifestar sobre o tema, mas não respondeu aos questionamentos feitos pela Sputnik até o fechamento da matéria (atualizaremos com as devidas declarações no caso de resposta).