Aos trancos e barrancos, o movimento funk segue os passos do samba, do rap, da capoeira e até mesmo do futebol. A Sputnik Brasil traz uma análise do tema que tem uma singularidade com os demais: em comum em todos esses momentos da história brasileira, o protagonismo negro e a criminalização informal por suas matrizes estarem nas regiões periféricas.
"Você indo para esse tipo de local, onde ocorrem os chamados 'pancadões', onde há consumo de drogas, isso acaba por atrair bandidos, e a probabilidade da sua vida ficar em risco aumenta, e muito. A exemplo do que eu sempre fui aconselhado dentro de casa, evite esses lugares. Para você sobreviver, não é essencial esse tipo de diversão", afirmou o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro.
A declaração foi dada pelo parlamentar dias após nove jovens terem morrido pisoteados depois de uma perseguição da Polícia Militar (PM) adentrar um chamado "pancadão", como são conhecidos os bailes funk em São Paulo. Na versão dos policiais, eles perseguiam uma dupla em uma moto que teria disparado contra os agentes.
Os dois suspeitos, ainda na versão da polícia, teriam fugido em meio à confusão da festa que acontecia ao ar livre em Paraisópolis. Os PMs foram alvos de hostilizações, de acordo com os agentes, e reagiram para dispersar a multidão. Foi então que se deu a correria, as explosões de bombas e o pisoteamento dos jovens que saíram de casa só para se divertir, mas não voltaram.
Especialistas em segurança ouvidos pela Sputnik Brasil não têm dúvidas de que o movimento funk ainda é marginalizado e, como a historiadora e antropóloga social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Adriana Facina, classificou em um artigo, é visto como "um dos ritmos mais malditos da cultura popular brasileira".
Criminalizar interessa a quem?
Para o professor do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Sérgio Salomão Shecaira, há uma tentativa coordenada de sufocamento de movimentos como o funk, desconsiderando a importância que tal manifestação cultural é importante na periferia e subúrbios das grandes cidades.
"Esse sufocamento parte de uma série de medidas, desde de dificultar a realização do baile funk com regras absurdas, dizer que você tem que fazer de dia ou que pode fazer à noite, mas que precisa ter vedação acústica nos locais, realmente é uma coisa que não faz nenhum sentido. Então existe desde medidas policiais, como batidas para verificação e identificação de carros não emplacados, que são medidas administrativas, até policiais verificando idade, enquanto você não toma as mesmas medidas entre as camadas mais ricas da sociedade", analisou Shecaira.
Um orientando dele na USP defendeu uma tese de mestrado especificamente tratando da criminalização do funk no Brasil sob o ponto de vista teórico. Uma das conclusões do trabalho é a de que "o funk é ameaçador porque, apesar de ter se popularizado, ainda é identificado com aglomerações de jovens negros, pobres e favelados", fruto de uma "visão generalizada e estereotipada [...] em uma sociedade racista e que não fornece estruturalmente os meios para realizarem de forma lícita as metas culturais".
O ponto de vista encontrado na academia ressoa e ganha fôlego por quem trabalha nas ruas, diretamente com as comunidades negras e carentes. Em entrevista à Sputnik Brasil, o diretor executivo da ONG Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro), frei David Santos, pontuou que, na sua opinião, o funk é apenas a "bola da vez" do que chama de "poder central" para atacar a população negra do país.
"Nós negros entendemos que tudo que é produção da população negra está, infelizmente, ligado com um processo de criminalização e discriminação do poder central. O samba sofreu discriminação em vários momentos da história, e agora compreendemos que a grande bola da vez a sofrer pressão é o funk. Não vamos discutir detalhes da postura, das estratégias que o funk usa para se colocar na sociedade, mas vamos nos manter fortes neste ponto: é uma produção cultural negra, e tudo que é negro o poder central sempre quis tornar marginal, como coisa do mal e perigosa. Então entendemos que temos de ter um olhar sobre a discriminação oficial e institucional do poder central contra a produção do povo negro", afirmou.
Catarse no Rock in Rio
Se em 1º de dezembro do ano passado o funk e seus seguidores viveram um dia de luto, no final de setembro o motivo foi de festa. O estilo foi protagonista no Espaço Favela, pela primeira vez oferecido ao público na edição 2019 do Rock in Rio, um dos maiores e mais tradicionais festivais de música do país.
Ao longo de sete dias, várias atrações majoritariamente criadas em comunidades carentes brasileiras, fizeram algo que nem mesmo o DJ Marlboro – visto como o "pai" do funk tupiniquim a partir do seu trabalho Funk Brasil em 1989 – imaginava ser possível. E não foi só: a cantora Anitta foi uma das atrações do Palco Mundo, o principal do festival.
"Meu sonho era ter o funk reconhecido. Desde o meu início, por ser uma artista de funk, o tratamento sempre era diferente. Era de qualquer jeito, sem estrutura. Eu sempre quis trabalhar para que isso mudasse", destacou a cantora à época ao portal UOL. Outros rostos conhecidos também comemoraram a aparição o funk em um evento mainstream.
"Algumas pessoas dizem que o funk demorou a entrar aqui, mas entendo tudo como um processo natural. É claro, eu e o Claudinho começamos lá atrás e já havíamos quebrado vários tabus, mas nossa carreira foi prejudicada pela partida dele [morto em um acidente de carro, em 2002]. Foi necessário que surgisse uma nova geração, com trabalhos muito bem produzidos como os de Anitta e Ludmilla, para que essa barreira fosse quebrada e o funk ganhasse todo esse respaldo", opinou ao portal G1 o cantor Buchecha.
Proteger para não marginalizar
As queixas de Anitta e Buchecha ganham quórum também de quem estuda a segurança, a violência e as comunidades carentes. Na visão do coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e (LAV-Uerj), Ignacio Cano, o que muda entre o baile nas favelas e periferias e as apresentações como as do RiR é a postura do Poder Público.
"Qualquer aglomeração de pessoas jovens comporta um certo risco de algum conflito ou algum consumo de entorpecentes. A obrigação do poder público é facilitar o lazer das pessoas e tentar protegê-las, e não tentar impedir ou tentar direcionar para que tipo de lazer as pessoas deveriam ter. Claro que essa criminalização do funk tem a ver com o funk ser uma forma de lazer da juventude própria das áreas periféricas e, evidentemente, existe consumo, como existe em muitas festas de classe alta, mas lá o Poder Público não tenta impedir as festas de classe alta", ponderou em entrevista à Sputnik Brasil.
"Então acho que o erro estratégico foi o Poder Público não ter tentado promover o funk, oferecendo condições de segurança para as pessoas. Ao invés de combater o funk, o Poder Público deveria promover e fornecer segurança ao mesmo tempo. Tentativas de impedir só criam mais conflito e, obviamente, não impedem o funk, mas jogam ele ainda mais na marginalidade. Quanto mais você o persegue, mais marginal ele fica e, portanto, mais possível que aconteçam atoa delituosos ou conflitos", complementou.
O professor Shecaira também adotou tom parecido ao comentar a presença do funk em espaços distintos.
"No limite, [o Estado] não está proibindo a música, está proibindo em determinado contexto em que essa música toque. No Rock in Rio, um espaço de ricos, um lugar onde não há incomodo em termos de barulho para a vizinhança, você autoriza. Ocorre que o Rock in Rio acontece uma vez por ano [na verdade uma vez a cada dois anos] e não estamos falando que não deva acontecer, ao contrário, mas ele acontece em um contexto que é muito diferente do pancadão cotidiano", disse à Sputnik Brasil.
Cultura que veio para ficar
As letras e as batidas são os elementos centrais que polemizam o funk perante os seus críticos. Em 2017, uma proposta encabeçada por um webdesigner de 47 anos de São Paulo – e que reuniu quase 22 mil assinaturas – tocou nesses dois pontos para pedir junto ao Senado Federal a criminalização do funk no Brasil.
"É fato e de conhecimento dos brasileiros, difundido inclusive por diversos veículos de comunicação de mídia e internet com conteúdos podre (sic) alertando a população o poder público do crime contra a criança, o menor adolescente e a família. Crime de saúde pública desta 'falsa cultura' denominada funk", dizia a proposta, sem maiores detalhes.
Discutida por senadores e setores da sociedade civil, a proposta acabou rejeitada. Em uma das audiências, o senador Romário, relator da proposta, condenou as críticas que são feitas ao movimento funk, afirmando ainda para o risco de uma "adesão cega" ao preconceito.
"Lembro que há um século o sambista e a cultura do samba, hoje patrimônio prezado por todos os brasileiros, eram perseguidos sob o pretexto de vadiagem. Sambistas eram classificados de vadios, que era um tipo penal. Hoje, funkeiros são apresentados como estupradores e traficantes não por serem estupradores e traficantes, mas por serem funkeiros", afirmou o senador, citado pela Agência Senado.
Na mesma audiência, o funkeiro Bruno Ramos, um dos criadores da Liga do Funk, de São Paulo, destacou um aspecto que parece fugir aos críticos do movimento: "o funk surge como possibilidade real de inclusão social e independência para a juventude. Não tem sentido se falar em crime", cravou ele.
Em seu artigo intitulado "'Não me bate doutor': Funk e criminalização da pobreza", Facina avaliou, com base em trabalhos teóricos e de campo, que a simplicidade é uma marca do funk desde os seus primórdios, nos anos 1980.
"No mundo do funk há uma aproximação muito explícita entre criação e fruição, pois muitos frequentadores dos bailes, consumidores dos CDs e outros produtos da indústria funkeira são também criadores. Com letras simples, acompanhadas de sons feitos por colagens, sem a necessidade de uma formação musical mais formal e especializada, o funk abre espaço para aqueles que sonham em ser MCs e vêm nisso uma perspectiva de carreira bem mais atraente do que outras disponíveis para essa camada social", apurou a pesquisadora.
Assim, a ideia de que o funk não seria sequer uma manifestação cultural parece fadada ao passado – e a integração do gênero a um evento como o Rock in Rio parece ser apenas o começo de uma absorção que já ocorreu com outros gêneros musicais e movimentos culturais de outrora.
"Uma pessoa que diz que funk não é arte é uma pessoa bastante limitada e exageradamente afogada no mundo cultural europeu. Exageradamente afogada e limitada ao mundo cultural europeu. As expressões de arte são amplas, não há nenhum poder ou normas que definam arte é até 10 metros, depois de 10 centímetros não é mais arte. Não existe isso. A arte é tudo aquilo que as pessoas acolhem, e a música é arte e qualquer música produzida por qualquer grupo humano, enquanto tem pessoas que gostam, atrai o povo é arte e ponto, acabou. Independente de quem não goste", defendeu frei David Santos.
"Historicamente, aconteceu com o samba, depois chegou na capoeira, e manifestações que eram inicialmente vistas com receio, criminalizadas, acabaram sendo absorvidas pela contemporaneidade. E é possível que isso aconteça com o funk, mas provavelmente quando isso acontecer, haverá uma nova manifestação nas áreas populares para criminalizar", alertou Ignacio Cano.
Por sua vez, Sérgio Salomão Shecaira entendeu que há hoje uma "perversidade" que envolve o funk, e que trata-se de uma manifestação de intolerância, uma palavra que constantemente aparece na mídia e em rodas de conversas de amigos do Oiapoque ao Chuí.
"Estamos absolutamente intolerantes com aquilo que é a manifestação cultural do pobre. Na verdade, o próprio samba só deixou de ser perseguido quando ele passou a ser encampado pelas classes um pouco mais altas, quando ele passou a ser tocado e aceito pela comunidade", avaliou o docente da USP.