Quarentena deve ser mantida? Brasileiros debatem prós e contras das medidas de isolamento

Nesta semana, a Sputnik Explica as diferenças de pensamento entre as pessoas que são a favor e as que são contra a quarentena no Brasil.
Sputnik

No domingo (19), a mídia destacou a participação do presidente Jair Bolsonaro em manifestação em Brasília que, além defender a intervenção militar e o fim da quarentena, gerou uma aglomeração de pessoas, em franca violação às regras de isolamento social em tempos de COVID-19.

Apesar do furor, muitos brasileiros concordam com Bolsonaro. No início do mês, pesquisa do Datafolha revelou que 33% do eleitorado segue fiel ao presidente. Nesse contexto, manifestações pedindo o fim da quarentena e imediata "reabertura da economia" foram organizadas em todo o país.

A Sputnik Brasil conversou com dois apoiadores para compreender quais os argumentos e anseios desse grupo que prefere deixar a COVID-19 de lado e tocar a vida e os negócios. Para balancear o nosso relato, convidamos a mestre em Desenvolvimento pela Universidade de Columbia (EUA), Helena Tavares, que é a favor da quarentena, para nos explicar por que ela acha que os brasileiros devem continuar em casa.

Fernando Cruz Júnior, empresário e dentista da cidade de Lins, no interior de São Paulo, conta que participou de manifestações contra a quarentena na sua cidade.

"Acho que quem defende quarentena são pessoas que estão estabilizadas financeiramente, sem grandes dificuldades na vida", contou Fernando à Sputnik Brasil.

Um empresário de Mato Grosso do Sul, que conversou com a Sputnik Brasil em condição de anonimato, também é contra a quarentena atual e defende o "isolamento vertical".

"A quarentena é importante válida para os grupos de risco, idosos, diabéticos, hipertensos, pessoas com problemas respiratórios com asma ou doença pulmonar obstrutiva crônica, a DPOC", disse, alegando que os demais deveriam voltar ao trabalho.

A estratégia do isolamento vertical foi defendida por países como o Reino Unido no início da pandemia. Mas, conforme o número de casos aumentava e as dificuldade em isolar os grupos de risco ficavam evidentes, o país passou a adotar o isolamento horizontal.

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"A proposta do isolamento vertical é bonita no discurso, mas pouco eficiente na prática", alerta Helena Tavares, lembrando que muitos idosos no Brasil vivem em habitações precárias, dificultando o isolamento. 

Governadores e Bolsonaro

As manifestações contra a quarentena frequentemente expressam hostilidade contra prefeitos e governadores, que têm liderado a aplicação das medidas de isolamento social.

"Eu sou contra essas manifestações, principalmente por elas apresentarem um cunho político muito forte", lamentou Helena.

Fernando concorda que a COVID-19 foi politizada, dizendo acreditar que os governadores que mantêm a quarentena estão empenhados em retirar Bolsonaro do poder.

"O que eu vejo é um complô de governadores, que comandam os prefeitos dos seus respectivos partidos, querendo derrubar Bolsonaro", acredita.

Helena lamenta que os governadores no Brasil não "tenham recebido uma diretriz clara do governo federal", e considera "bom que os estados tenham autonomia para tomar decisões".

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Fernando pensa diferente, e acredita que os governadores estão interessados em receber o dinheiro de obras públicas feitas sem licitação para combater a COVID-19.

O empresário sul-mato-grossense também acha que os governadores fazem mal-uso do dinheiro público sob o pretexto de combater a COVID-19 e cita o caso da capital do Amazonas, Manaus, como um dos exemplos.

"Existem hospitais privados em Manaus com todos os recursos necessários para atender aos contaminados, mas infelizmente preferem gastar milhões [de reais], para atender a interesses escusos", argumentou.

Para Helena, a situação lamentável da cidade de Manaus hoje poderia ter sido evitada, "se tivesse tido uma quarentena estruturada, considerando que Manaus, em função da Zona Franca, é uma cidade que recebe muitos estrangeiros".

Para ela, casos como o de Manaus mostram que os sistemas de saúde brasileiros não estão preparados para receber um grande número de casos de COVID-19 em um curto espaço de tempo.

Deixar o vírus se propagar?

Os entrevistados concordam quando o assunto é informação e mídia. Eles se sentem desinformados, têm dúvidas em relação à veracidade dos números divulgados pelo governo, e estão sendo bombardeados por vídeos sobre a pandemia em aplicativos como o WhatsApp.

"A gente recebe esses vídeos sobre pessoas que morreram por causa de um pneu estourado, e que foram registrados como se tivessem morrido por COVID-19. Precisa ver se tudo isso é real", disse Fernando.

Não é real. A Secretaria Estadual de Pernambuco esclareceu a situação, mas o conto do borracheiro segue sendo propagado nas redes sociais.

Na ausência de números e fatos concretos, é difícil avaliar quais seriam as consequências de uma retirada da quarentena e quantas vidas poderiam ser perdidas, avaliam os entrevistados céticos de quarentena.

"Todos sabemos que este vírus não vai deixar de existir e que os grupos de risco, mais cedo ou mais tarde, estarão sujeitos ao contato com o vírus", disse o empresário do MS.

Fernando adota o mesmo tom resignado: "Muitas pessoas vão morrer com COVID-19. Que vai morrer muita gente, vai. A vida é assim."

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Apesar de ser realista assumir que a COVID-19 irá fazer vítimas, isso não significa que podemos retirar a quarentena e deixar o vírus correr solto, alerta Helena Tavares.

"Esse é um pensamento muito curtoprazista. Muitas pessoas do grupo de risco são chefes de família. O que vamos fazer com os órfãos do coronavírus? Como vamos prestar assistência para eles?", questionou.

Ela lembra que a COVID-19 não se limita a fazer vítimas entre os mais velhos. Na ausência de medidas de contenção, os agentes de saúde também são contaminados.

Economia e Saúde

Mas o argumento mais forte das pessoas que querem o fim da quarentena é a questão econômica.

"É fácil para as pessoas falarem 'fica em casa' de dentro de uma mansão com a geladeira cheia", provocou Fernando.

"Aqui no Brasil, o número de empresas que já fecharam está na ordem de 600 mil, gerando nove milhões de novos desempregados. Isso está gerando o aumento da fome e da miséria nas classes mais pobres que são a grande maioria da população", disse o empresário sul-mato-grossense.

Para ele, países subdesenvolvidos como o Brasil não têm recursos econômicos para fazer uma quarentena abrangente contra a COVID-19.

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"Possivelmente nos países mais ricos, os governos têm condições de manter as pessoas sem trabalhar. Mas na América Latina, na África [...] acredito que os países não têm esta condição."

Helena Tavares não concorda com a ideia de que o Brasil não tem como bancar a quarentena.

"Acho que temos que pensar de forma aberta para disponibilizar instrumentos de proteção social para lidar com a epidemia. Temos BNDES, Previdência Social, temos instrumentos que não estamos usando ainda."

Ela argumenta que, para as pessoas poderem voltar ao trabalho, será necessário realizar testes em massa

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"Hoje, o Brasil, dentro do grupo do G20, é o penúltimo em número de testes, estamos atrás da Argentina, que está com problemas econômicos graves", lamentou.

Bolsonaro é o X da questão

A postura do presidente Bolsonaro é o motor das manifestações e o pano de fundo das divergências entre os nossos entrevistados.

Fernando, eleitor de Bolsonaro, admira a capacidade do presidente de "ser honesto e falar a verdade". Bolsonaro já disse que cerca de 70% da população brasileira vai pegar COVID-19 e que "alguns vão morrer? Vão, ué, lamento".

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Tavares concorda que os líderes mundiais devem ser realistas e não temer falar duras verdades para o público e cita a chanceler alemã. 

"Angela Merkel entregou uma mensagem dura e verdadeira para a Alemanha, dizendo que 70% da população deve ser infectada pela COVID-19", lembrou. "Mas a diferença é que ela, ao contrário de Bolsonaro, propõe uma solução, aponta os caminhos. Você precisa ter um plano para resolver a crise."

Para Tavares, "temos que nos espelhar em outros países que enfrentam a pandemia há mais tempo do que a gente".

"Por isso, sou a favor da quarentena”, porque os países que demoraram para agir viram "seus sistemas de saúde entrarem em colapso".

O Brasil é o 11º país mais afetado pela COVID-19 no mundo, com 46.182 mil casos e 2.924 mortes. O novo coronavírus já infectou mais de 2,5 milhões de pessoas e fez quase 190 mil vítimas fatais mundialmente, de acordo com a Universidade Johns Hopkins (EUA).

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As opiniões expressas nesta matéria podem não necessariamente coincidir com as da redação da Sputnik

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