Em reunião virtual com congressistas na última terça-feira (5), o ministro da Educação, Abraham Weintraub, descartou o adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020, marcado para o mês de novembro, apesar dos inúmeros apelos feitos por parlamentares, estudantes e seus familiares.
Os que defendem o adiamento das provas argumentam que, por conta do isolamento social adotado em decorrência do surto do novo coronavírus, que inclui o fechamento de escolas, muitos jovens não terão condições adequadas de se preparar para as provas ou mesmo de se inscrever, por dificuldades de acesso à Internet.
A maioria dos senadores, segundo reportagem publicada pela Folha de S. Paulo, pede que o Enem seja adiado, por conta desse acirramento de desequilíbrios já existentes entre os candidatos a vagas no ensino superior. Weintraub, no entanto, opina que não é função do exame corrigir injustiças, mas apenas selecionar.
Para o pedagogo Lincoln Araújo, professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o ministro da Educação, ao adotar uma postura de distanciamento em relação a interesses da sociedade, estaria levando adiante uma espécie de jogo orientado pelo próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, a fim de manter uma aparência de normalidade em meio a uma complexa e desafiadora situação imposta pela pandemia da COVID-19.
Em entrevista à Sputnik Brasil, o acadêmico afirma que, a despeito da intenção de Weintraub, o Enem já é uma "instituição nacional" que demanda, sim, cuidados especiais neste momento atípico.
"O ministro da Educação desconhece ou desrespeita a resolução que foi publicada no Diário Oficial da União em 4 de maio, na última segunda-feira, que é uma resolução, Resolução Nº 5 de 2020, do Conselho Nacional de Educação, que fala sobre a questão do calendário escolar e a pandemia [Parecer: CNE/CP 5/2020]", diz o professor, citando um documento do CNE que recomenda aguardar o "retorno às aulas para definir o cronograma e as especificidades do Enem 2020 de modo a evitar qualquer prejuízo aos estudantes nos processos seletivos às Instituições de Ensino Superior".
Araújo destaca que o Conselho Nacional de Educação "chama a uma ponderação e a uma racionalidade, que são duas qualidades da formação educativa e cultural do ser humano que precisam ser relevadas", e que, no seu entender, parecem faltar "àqueles que, hoje, administram a educação nacional".
"O calendário, é claro, precisa, pelo menos, ser revisto diante das condições da sociedade brasileira em relação à pandemia", sublinha o especialista.
Apesar da posição inflexível do ministro diante de um assunto tão sensível para milhões de pessoas, o pesquisador da UERJ acredita que a questão do Enem acabará por ser definida com a participação dos outros poderes da República, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, que, muito provavelmente, não permitirão que o calendário do Exame Nacional do Ensino Médio seja cumprido de maneira a prejudicar a participação de tantos estudantes.
"Parece que o país, para o executivo, funciona normalmente", afirma o professor, avaliando que, caso o Enem seja realizado da forma como deseja Abraham Weintraub, possivelmente, o exame acabará sendo declarado nulo, por ferir o direito de acesso à educação dos menos favorecidos.
"Nós estamos vivendo uma situação extremamente delicada. Talvez, o momento mais difícil e complexo da nossa República. Com certeza, o mais complexo em relação ao pós-Constituição de 88. E vamos falar uma coisa: é, hoje, a Constituição de 1988 que nos resguarda minimamente de um poder arbitrário e das garantias mínimas de direitos sociais."
Professor de escola básica e do Pré-Vestibular Social do Cederj (Centro de Ciências e Educação Superior à Distância do Estado do Rio de Janeiro), Alan Guedes afirma que o "Enem sempre foi um retrato da desigualdade entre alunos das escolas públicas e privadas", independentemente da pandemia. A situação atual, segundo ele, só deixou mais clara essa diferença entre os alunos de famílias mais ricas e os de famílias com rendas menores.
Nesse sentido, mesmo acreditando que já não há, de fato, uma competição igualitária entre os participantes do exame, o professor defende que, dadas as circunstâncias, o adiamento seria a "escolha mais sensata", pois aumentaria um pouco as chances desses estudantes que, tradicionalmente, já são mais prejudicados e, agora, estão sem qualquer acesso ao ensino.
"O adiamento não corrigirá as injustiças já associadas à prova, porém permitir as atuais datas é prejudicar milhões de brasileiros. O Senado, como casa de excelência da política, precisa ter essa preocupação e [os senadores] estão certos ao defender o adiamento", diz Guedes também em declarações à Sputnik Brasil, deixando claro que adiar não significa cancelar, pois essa outra opção, segundo ele, afetaria ainda mais universidades públicas sucateadas, que, provavelmente, sofreriam mais cortes de verba.
O professor destaca que a modalidade de curso no qual trabalha, o pré-vestibular social, é uma das principais ferramentas existentes hoje para ajudar no acesso dos mais pobres às faculdades, mas esses cursos "estão todos congelados".
"Os meios digitais não são ainda disponíveis para todos. Se fugirmos das regiões metropolitanas, o abismo se torna mais profundo. Além disso, mesmo em contextos urbanos, a infraestrutura é complicada para algumas famílias, que podem, por exemplo, ter que dividir um computador para home office dos pais e as horas de estudo do filho. Neste momento de incertezas sobre o futuro, não faz sentido manter as datas atuais do Enem."