Há 75 anos, o Brasil concluía sua participação vitoriosa na Segunda Guerra Mundial. Os soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e as enfermeiras que atavam as suas feridas fizeram contribuição fundamental para a derrota da Alemanha nazista.
A Sputnik Brasil conversou com a professora da Escola Superior de Guerra, Dra. Margarida Rocha Bernardes, para conhecer a história das 67 enfermeiras brasileiras que foram para o front na Itália, em julho de 1944.
"Quando o Brasil partiu para a guerra, fomos com 25 mil homens. Mas quem iria cuidar desses soldados?", perguntou Bernardes. "Enfermeiras norte-americanas solicitaram oficialmente que o Brasil levasse enfermeiras para a guerra. Então foi feita uma convocação através da mídia. Foram 139 inscritas e 76 candidatas, das quais 67 foram para o front."
"Cada uma teve os seus motivos", contou Bernardes, que entrevistou nove das 67 enfermeiras, durante seus 20 anos de pesquisa sobre o tema. "Em um primeiro momento, elas manifestavam o desejo patriótico de servir ao Brasil."
"Mas depois vinham à tona outros motivos: algumas precisavam de trabalho, o que era raro na década de 40 para uma mulher, outras queriam se livrar da família", explicou Bernardes à Sputnik Brasil.
"Eu fui para a guerra por ousadia, por coragem para enfrentar a vida", disse a tenente Carlota Mello, em entrevista ao diretor Daniel Mata Roque, no documentário "Aquelas Mulheres de Farda".
"A tenente Virgínia Portocarrero, por outro lado, tinha três primos-irmãos que foram para a guerra, e ela então quis ir também."
A maioria das famílias não apoiaram a empreitada de suas jovens enfermeiras.
"A Virgínia tinha família de militares, e a sua mãe pediu a um tio que a reprovasse no exame físico." No entanto, Virgínia desvendou o truque da mãe e conseguiu completar a sua missão.
As enfermeiras precisavam necessariamente ser solteiras. Mas "uma delas [tenente Elza Miranda da Silva] era casada, e o seu marido estava na guerra". "Todo mundo a ajudou a esconder o casamento e facilitavam os encontros dela com o marido durante a guerra", contou Bernardes.
O trabalho no front
Uma vez no front, as enfermeiras foram submetidas "à dura rotina do plantão, da exaustão. Viravam noite, caíam dentro, sofriam e levantavam", disse Bernardes.
"Elas ganhavam salário igual ao do tenente homem. Mas o salário do tenente homem era entregue a ele. O salário da tenente mulher era dividido: um terço era para elas, um terço para os pais, e um terço ficava guardado em uma poupança. E todas me contaram isso como se fosse um detalhe menor, mas é difícil acreditar que isso não as incomodasse", relatou Bernardes.
Além do esforço de trabalhar em zona de alto risco e vivenciar experiências traumáticas, as enfermeiras brasileiras cumpriam dupla jornada como "assistentes sociais, fazendo o papel de família para os soldados".
Um soldado ferido gravemente ficou sob os cuidados da tenente Carlota Mello. Deprimido por ter perdido as duas pernas, "decidiu romper seu noivado".
Na volta para o Brasil, Carlota procurou a noiva e contou-a que o soldado tinha terminado o relacionamento por causa da amputação e que ele ainda a amava. O soldado e sua noiva "acabaram se casando e constituíram família", graças à sensibilidade da nossa tenente enfermeira.
Soldados inimigos
As enfermeiras brasileiras não cuidavam somente dos feridos aliados, mas também dos inimigos alemães feridos no campo de batalha.
"Elas contavam que cuidar dos alemães era muito mais fácil do que cuidar de ingleses ou de americanos, porque eles não reclamavam de injeção, nem de medicação. Isso esteve presente no relato das nove enfermeiras", conta Bernardes.
"Em um dado momento, proibiram que os aliados dessem cigarros e chocolates para os alemães. A comida, todos teriam a mesma, mas essas guloseimas eram proibidas para inimigo. A enfermeira Virgínia fez uma caixa especial, chamada 'caixa da enfermeira', na qual quem quisesse podia colocar cigarros, chocolates, balas e doces" para os alemães feridos.
Anos mais tarde, o sargento Virgulino, "um herói de guerra brasileiro, que foi capturado pelos alemães, escreve uma carta para Virgínia contando que, quando estava ferido, na enfermaria do inimigo, as enfermeiras alemãs, que tinham muito pouco a oferecer, dividiam as suas batatas com ele e seus colegas".
Ele agradece a Virgínia pelo seu gesto, dizendo que "você fez pelos alemães o mesmo que elas fizeram por nós".
Volta para casa
Algumas enfermeiras voltaram para o Brasil, mas nunca saíram do Hospital do Exército, onde faleceram em função de ferimentos obtidos no front. As demais "foram licenciadas pelo Exército ao voltar, assim como a maioria da tropa brasileira".
"Elas foram licenciadas pela portaria número 8.411, publicada no Diário Oficial de 23 de junho de 1945. Anos depois, elas entraram na justiça e obtiveram o direito de retornar para o Exército", conta Bernardes. "Elas ficaram de junho de 1945 até 1954 em outros empregos, ou em suas casas. Só voltaram ao serviço ativo por imposição da lei."
No entanto, para Bernardes, as enfermeiras foram "um embrião" para a participação das mulheres nas Forças Armadas Brasileiras, que só terá novo impulso na década de 1980.
"[As enfermeiras da FEB] impactaram, porque se faziam presentes nas organizações militares, participavam do desfile de 7 de setembro. Acabaram fazendo um trabalho de reconhecimento, de demarcar território", conta.
75 anos de luta
Dentre os participantes do setor de saúde da FEB, ainda "duas enfermeiras estão vivas: uma com 102, a outra com 105 anos, além de um médico, de 100 anos, e um dentista". Todos eles fazem parte do grupo de risco da COVID-19.
Para Bernardes, "há muita similaridade" entre o trabalho no front e na batalha contra o novo coronavírus.
"Uma enfermeira na linha de frente contra a COVID-19, Raquel Ramos, positivou para a COVID-19, foi afastada por 15 dias, e retornou. Está trabalhando. A enfermeira Virgínia Portocarreiro também, durante a Segunda Guerra Mundial passou por uma apendicectomia e, 15 dias depois, estava trabalhando. Em 75 anos de diferença, as enfermeiras se portam da mesma forma", conta Bernardes.
"Cada uma em uma guerra diferente. Uma, em uma guerra declarada, contra o alemão, com aliados russos, norte-americanos e britânicos. E outra, em uma guerra na qual o mundo inteiro luta contra a COVID-19."
A nossa ousada tenente Carlota Mello "foi internada recentemente, com suspeita da COVID-19", aos 105 anos. Durante a internação "ela optou por não ser entubada", para que as enfermeiras cuidassem dos mais jovens.
Enquanto fazemos votos para que os hospitais possam cuidar tanto dos mais velhos, quanto dos mais jovens, respiramos aliviados por saber que a suspeita de COVID-19 da tenente Carlota Mello foi descartada.
Neste mês, o Brasil e a Rússia, aliados durante a Segunda Guerra Mundial, comemoram os 75 anos da vitória sobre o nazismo. A Sputnik Brasil traz uma série de reportagens especiais para relembrarmos a história desse conflito, a fim de garantir que ele nunca se repita.