Depois, dezenas tiveram dores de cabeça, febre e tosse. Dois morreram. E a equipe médica de cinco pessoas, que é mantida pelo governo para atender a comunidade de cerca de quatro mil pessoas, não está tratando os doentes por falta de equipamentos de proteção e testes de coronavírus, afirma o líder da tribo Sinesio Tikuna.
Os Tikuna confiam em seu remédio tradicional para doenças respiratórias: inalar nuvens de fumaça da queima de plantas medicinais e colméias.
A situação dos Tikuna ilustra o perigo do coronavírus, que se espalha para áreas de floresta tropical e locais onde populações indígenas vivem em proximidade e com serviços médicos limitados. A maioria é acessível apenas por barco ou aeronave pequena.
"Estamos muito preocupados, principalmente porque a ajuda não está chegando", disse Sinesio Tikuna em uma entrevista por telefone para a agência de notícias Associated Press.
O Brasil tem o maior número de mortos de COVID-19 da América Latina, com mais de 16 mil óbitos neste domingo (17). A cidade mais atingida, segundo taxas per capita, é Manaus, onde valas comuns estão se enchendo de corpos.
Enquanto Sinesio Tikuna descrevia na entrevista por telefone sua crença de que a fumaça da colméia salvou quatro membros da tribo doentes, não havia ninguém no hospital de Manaus para ajudar uma mulher com febre, lutando para respirar, a entrar na sala de emergência. Um policial a colocou em uma maca, levando-a para dentro com a ajuda de um fotógrafo da Associated Press.
Os povos indígenas que habitam os rios Solimões e Negro, que se fundem em Manaus para formar o rio Amazonas, tentaram por semanas isolar suas reservas do vírus, pedindo doações enquanto aguardavam a entrega de alimentos pelo governo para que pudessem permanecer isolados. Não foi o suficiente para muitos, disseram defensores dos indígenas.
A bacia do Alto Solimões possui 44 reservas de tribos e emergiu como um local com alta taxa de infecção indígena na Amazônia brasileira. Os testes são extremamente limitados, mas mostram que pelo menos 162 de aproximadamente 76 mil indígenas da área foram infectados e 11 morreram. Existem mais de 2 mil infecções confirmadas em partes do território que não têm serviços públicos de saúde para a população indígena.
Em uma aldeia Tikuna chamada Umariacu, perto da fronteira com Peru e Colômbia, as três primeiras mortes por COVID-19 foram de idosos infectados por membros mais jovens que deixaram a cidade para receber pagamentos do governo e trocar peixes e produtos por frango e outros alimentos, disse Weydson Pereira, que coordena os serviços de saúde do governo na região.
"Nossa maior angústia hoje são os povos indígenas que não ficam em suas comunidades e entram e saem da cidade. Hoje, o lugar mais seguro para eles é dentro de suas aldeias", disse Pereira este mês, infectado e isolado em casa com sua esposa e filha infectadas.
Duas semanas de quarentena entre as tribos na região forneceriam tempo para identificar e isolar os casos, mas "infelizmente, isso não aconteceu'', disse ele.
Na mesma área, pessoas da etnia Kokama não conseguiram tratamento médico no sistema de saúde da pequena cidade de Tabatinga ou no prestador de cuidados do governo, disseram promotores federais em um processo movido esta semana.
Os dez ventiladores do hospital estão em uso por pacientes com coronavírus e a terapia intensiva mais próxima fica a 1.600 quilômetros rio abaixo em Manaus, também cheia de pacientes, disse Pereira.
A falta de tratamento para o coronavírus em Manaus levou Pedro dos Santos, líder de uma favela chamada Parque das Nações Indígenas, a beber chá feito de raiz de chicória, alho e limão para combater uma febre alta que durou 10 dias. Um vizinho de 62 anos da etnia indígena Bare precisava de um leito de UTI, mas nenhum estava disponível e ele morreu, disse o filho do homem, Josué Paulino.
Alguns moradores assustados de Manaus, cidade com 2,2 milhões de habitantes, estão fugindo, mas podem ser portadores assintomáticos e espalhar o vírus em outros lugares, disse Miguel Lago, diretor executivo do Instituto de Estudos de Políticas de Saúde do Brasil, que assessora autoridades de saúde pública.
Cerca de 925 quilômetros acima do rio Negro, fica o município de São Gabriel da Cachoeira, onde pessoas de 23 etnias indígenas compõem mais de 75% da população.
Cerca de 46 mil vivem na área urbana e em reservas rurais com trânsito frequente, disse Juliana Radler, consultora do Instituto Socioambiental, um grupo de defesa ambiental e indígena.
São Gabriel da Cachoeira reagiu rapidamente à ameaça da COVID-19. Uma semana após a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar o novo coronavírus uma pandemia, o trânsito de barcos e aviões foi cortado. As únicas exceções são bens essenciais e soldados.
Mas Radler afirma que alguns moradores de São Gabriel da Cachoeira presos em Manaus voltaram para casa em navios de abastecimento, desembarcando nas proximidades e entrando furtivamente na cidade sob o manto da escuridão. Cerca de outros 150 fizeram a viagem em uma balsa de três andares chamada Lady Luiza.
Quando chegaram dias depois, as autoridades tentaram e não conseguiram afastar os viajantes. Não há áreas de quarentena disponíveis e alguns passageiros da balsa podem ter levado o vírus a São Gabriel da Cachoeira, disse Radler.
A Marinha do Brasil autorizou a viagem da balsa e os passageiros estavam desesperados para ir para casa porque "se sentiam expostos e vulneráveis'' em Manaus, disse o proprietário de Lady Luiza no Facebook.
Em meados de abril, muitos residentes tinham o que acreditavam ser uma gripe forte. O comitê de COVID-19 da comunidade usou transmissões de rádio, caminhões de som e panfletos para emitir avisos sobre o vírus em idiomas portugueses e indígenas, incluindo Tukano, Nheengatu e Baniwa.
Um dos primeiros casos confirmados de coronavírus foi um professor da etnia Baniwa, que morreu após ser levado para Manaus para tratamento. Para a maioria das pessoas, a COVID-19 causa sintomas moderados como febre, mas pode resultar em morte.
Até esta semana, São Gabriel da Cachoeira tinha 292 infecções confirmadas e reservas indígenas próximas registraram seus primeiros casos.
Todos os seis ventiladores em funcionamento no hospital estavam em uso e os centros de saúde de tribos isoladas estavam com falta de suprimentos, disse Radler.
"Precisamos de um hospital de campanha o mais rápido possível, nos próximos 20 dias", disse ela. "Se não, será uma catástrofe, uma verdadeira catástrofe."