Como mercado internacional decide que países são fortes ou fracos no mundo dos games?

Muito mais do que simples entretenimento, os games podem influenciar as relações internacionais. Especialistas russos discutem o assunto, enquanto jogadores do mundo todo travam embates virtuais alucinantes durante a quarentena.
Sputnik

Os jogos são muito mais do que simples entretenimento, podendo funcionar como instrumento de propaganda, de simulador para uso de armamentos e, claro, plataforma para fazer amigos (e inimigos) de outros países.

Nesta sexta-feira (22), especialistas do Conselho de Relações Internacionais da Rússia (RSMD, na sigla em russo), reuniram-se para debater o impacto dos jogos on-line nas relações internacionais.

Representação do inimigo

Após os ataques de 11 de setembro de 2001, terroristas árabes se tornaram os inimigos preferidos da indústria de games nos anos 2000, mas, pouco a pouco, os especialistas observam a volta de um tradicional antagonista: o russo.

"Depois do fracasso das guerras do Iraque e Afeganistão, usar o árabe como inimigo se tornou uma questão controversa", explicou Leonid Moizhes, pesquisador do Centro de Pesquisa sobre Videogames de Moscou. "Nesse contexto, a volta do inimigo russo é muito conveniente."

Aleksei Naumov, vice-diretor do departamento internacional da rádio Kommersant, lembra que "a Rússia e a URSS estão quase sempre representadas de acordo com o estereótipo da época que o game representa, seja Segunda Guerra, Guerra Fria ou o mundo contemporâneo".

Nos jogos sobre o mundo contemporâneo, "os personagens russos são sempre fortes, não muito inteligentes, mas parceiros que não desistem nunca", relatou Naumov.

Como mercado internacional decide que países são fortes ou fracos no mundo dos games?

Para Naumov, o embate entre EUA e Rússia é um tema popular nos games, como "Battlefield 3", porque "os jogos precisam representar um conflito no qual as pessoas possam acreditar", explicou Naumov.

"Nesse jogo, os russos são os inimigos, mas é até legal se identificar com aqueles caras descolados, fortes e rudes que pilotam helicópteros maneiros [...] e dão trabalho para os norte-americanos", disse Naumov.

Inimigo e mercado consumidor

Para os especialistas, a indústria de games escolhe os inimigos de acordo com as demandas do mercado, e não com fatores políticos ou ideológicos.

"Para a indústria norte-americana de games existem três mercados: EUA e Canadá, Europa e China", disse Moizhes. De acordo com o Valor Investe, em 2019 o Brasil era o 13º maior mercado de games mundial, movimentando cerca e R$ 5,6 bilhões por ano.

"O mercado russo é muito pequeno, então não há risco de grandes perdas econômicas ao colocar o russo como inimigo", ponderou Moizhes.

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Essa preferência pelo lucro explicaria por que existem poucos videogames que mostram o chinês como antagonista, apesar do embate recente entre EUA e China no mundo real.

"Como a China é um grande mercado, que gera cerca de 20% do lucro da indústria de games, é evitado fazer jogos mostrando chineses como inimigos: o jogo simplesmente não seria bem recebido pelo mercado consumidor chinês", ressaltou Naumov.

Uso militar de videogames

De acordo com o especialista em assuntos militares Ernest Sleptsov, ao coletar informações sobre como o jogador reage às situações do jogo e opera suas armas virtuais, os videogames ajudam a desenvolver as Armas Autônomas Letais (LAW, na sigla em inglês).

"Para desenvolver essas armas, precisamos de dados sobre como combatemos. E esses dados são levantados com ajuda dos videogames", afirmou Sleptsov.

Os games também têm papel fundamental no treinamento de operadores de drones militares.

Como mercado internacional decide que países são fortes ou fracos no mundo dos games?

"Uma pesquisa mostrou que operadores de drones têm traumas psicológicos similares aos de um veterano de guerra", agregou Sleptsov.

Para Sleptsov, os games atuam a distanciar o operador de drone da realidade do combate no qual ele está engajado, diminuindo o seu contato com a realidade, a fim de reduzir os traumas psicológicos adquiridos na guerra à distância.

Propaganda?

Uma crítica muito comum aos videogames é que estariam atuando como instrumento de propaganda.

Para Naumov, "os games não são um instrumento de propaganda, mas refletem os estereótipos predominantes na sociedade".

"As pessoas simplesmente amam seus estereótipos e só se dispõem a consumir o produto que os reafirmam", defendeu Naumov.

Os games, no entanto, podem trazer consigo concepções sobre história e política que serão introjetadas no jogador, sem que ele perceba.

"Os games da série Strike, por exemplo, passam a ideia dos EUA como única potência hegemônica mundial, capaz de destruir ditadores árabes [...], narcotraficantes, norte-coreanos, e alguns russos muito estranhos que ameaçam a ordem mundial", lembrou.

Moizhes concede que os jogos podem fornecer "visões bastante simplificadoras da história", lembrando o caso do jogo "Company of Heroes 2", que trata do embate entre EUA e URSS durante a Guerra Fria.

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Naumov lembra que o Pentágono financiou o desenvolvimento de um dos jogos de guerra mais populares do século XXI, "Call of Duty", "que era disponibilizado de graça".

No premiado jogo russo "Syrian Warfare", o personagem principal é um policial sírio que vivia uma vida tranquila, até a guerra começar. Apesar do sucesso, jogadores norte-americanos relataram desconforto, uma vez que, no jogo, o Exército dos EUA fornece apoio a grupos terroristas. 

"Outros exemplos bem-sucedidos de jogos russos são o 'World of Tanks' e o 'IL-2 Sturmovik'", lembrou Sleptsov.

Games para prever o futuro

Para os especialistas, os videogames podem ser muito úteis para que especialistas façam prognósticos sobre a reação da sociedade a grandes eventos, como guerras, desastres naturais e, claro, pandemias.

"No jogo 'World of Warcraft' houve um caso, no qual uma pandemia virtual se espalhou pelos personagens. Nesse contexto, foram publicados artigos acadêmicos que descreviam como as pessoas reagiram à pandemia e como ela se propagou", contou Moizhes.

"Os videogames podem não ser muito úteis para nos responder quem irá vencer uma guerra [...], mas é uma forma viável de simular uma situação e observar como ela se desenvolve", ponderou Leonid Moizhes.

Um exemplo é um jogo muito popular na Rússia chamado "Metro 2033", no qual toda a sociedade moscovita se refugia no metrô da cidade, após uma catástrofe nuclear. 

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"Os games podem ser instrumentos para fazer prognósticos sobre como as pessoas vão reagir à guerra: o que elas vão fazer? Quais os víveres que elas vão procurar primeiro?", explicou Moizhes.

Ao trabalhar em cima de cenários de guerras do passado, os games podem trazer interpretações particulares da história. Da mesma forma, propondo cenários de conflitos futuros, podem estar preparando uma geração de jovens para uma guerra real.

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