Recentemente, foi tornada pública a intenção do atual governo norte-americano de contar com a ajuda do Brasil para reformular a Organização Mundial da Saúde (OMS), entidade com a qual os Estados Unidos decidiram romper em meio a divergências relacionadas ao surto da COVID-19, apesar dos apelos de membros da União Europeia (UE).
De acordo com uma reportagem do colunista Jamil Chade, do UOL, Washington já teria enviado a Brasília um documento enumerando princípios a serem levados em conta na reestruturação da OMS. Para a UE, tais princípios preconizados pela administração de Donald Trump teriam como objetivo esvaziar a agência, quando o foco deveria ser justamente o contrário, fortalecê-la.
O rompimento dos EUA com a organização se seguiu a uma série de acusações e ameaças feitas pelo presidente Trump, segundo o qual a OMS teria demonstrado pouca eficiência na gestão da crise do novo coronavírus, sendo também demasiadamente benevolente com a China, apontada pela cúpula da Casa Branca como culpada pela pandemia. E, assim, a reforma também visaria à neutralização da suposta influência chinesa junto à instituição.
Embora o Brasil não tenha se manifestado oficialmente sobre o assunto, o proclamado alinhamento automático do governo de Jair Bolsonaro a Washington é visto com preocupação por alguns especialistas. Diante da irritação da Europa com essa tentativa de Trump de reformular, a seu modo, a agência de autoridade máxima na saúde, um eventual endosso brasileiro à proposta norte-americana poderia pesar negativamente na relação com o bloco europeu.
Deterioração dos laços com a UE
Para o professor Vinícius Guilherme Rodrigues Vieira, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), na atual conjuntura, se o Brasil optar por ceder mais uma vez às pressões dos EUA, batendo de frente com países como Alemanha e França, é fato que isso poderá atrapalhar ainda mais, por exemplo, a ratificação do acordo comercial entre o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União Europeia, já ameaçado pela postura crítica dos europeus à polêmica política ambiental do atual governo brasileiro.
"Acho que a questão ambiental é mais importante do que a questão da OMS. Mas poderia, sem dúvidas, ser um fator adicionado. Ainda mais porque a Argentina, sob o [Alberto] Fernández, não é muito afeita ao acordo Mercosul-União Europeia. E também poderia resolver questões domésticas que, certamente, a França, sobretudo o [Emmanuel] Macron, vai enfrentar em 2022, na sua busca por reeleição. E a própria [Angela] Merkel já está enfrentando pressões fortíssimas, não apenas de grupos ambientais, mas também de lobbies agrícolas, protecionistas, para que, justamente, use essa questão Bolsonaro-meio ambiente-antiglobalização como desculpa para não assinar o acordo, depois de duas décadas de negociação", disse o analista em declarações à Sputnik Brasil.
Vieira acredita que, por conta do alinhamento da política externa brasileira a Trump, a Europa já tem buscado formas de isolar o Brasil. Um exemplo recente seria o apoio europeu ao pleito de outras nações latino-americanas na questão do possível adiamento, ou não, da eleição para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Enquanto o Brasil ficou ao lado dos EUA e de outros 15 países na defesa de uma votação ainda neste ano, a UE, ao lado de Chile, Argentina, México e outros, defendeu que a eleição deveria ser adiada para o ano que vem.
A queda de braço seria motivada principalmente pelo interesse do presidente dos Estados Unidos em eleger um cidadão norte-americano para chefiar a instituição, que sempre foi presidida por latino-americanos. Quebrando uma tradição de seis décadas e atropelando o desejo do Brasil de receber o apoio dos EUA a um candidato brasileiro, Trump indicou o estadunidense Mauricio Claver-Carone, seu conselheiro, para o cargo. Como Washington já tem um poder de decisão muito superior aos demais membros dentro do banco, a eventual nomeação de um americano para a presidência do BID aumentaria esse desequilíbrio a favor dos EUA, segundo críticos.
Para os que defendem o adiamento do pleito, se o mesmo for realizado em março de 2021, como desejado, é possível que, até lá, os EUA tenham um novo governo e outros interesses, o que poderia evitar uma mudança radical no funcionamento do banco.
"Isso aí é uma demonstração de como os europeus, na verdade, podem querer conter Bolsonaro, fazendo inclusive alianças preferenciais com México e Argentina", opina o professor. "O Brasil, surpreendentemente, apoiou a movimentação americana. Não que o Brasil não pudesse ter uma aliança com os Estados Unidos, mas é sempre surpreendente que o Brasil está a reboque dos EUA, em vez de buscar, em alguns pontos, ser o líder e aí, sim, buscar o apoio dos Estados Unidos contra, principalmente, os europeus e os governos mais à esquerda na América Latina", o que seria, talvez, o ideal para um governo brasileiro de direita e alegadamente nacionalista, explica.
Aliança com Trump pode não significar aliança com EUA
Em novembro, os Estados Unidos, país que tem sido, em teoria, o centro das manobras geopolíticas do Brasil desde o início da administração Bolsonaro, realizarão uma nova eleição. Caso o republicano Donald Trump, aliado pessoal do presidente brasileiro, seja derrotado pelo democrata Joe Biden na corrida pela Casa Branca, isso poderá representar um grande desafio de adaptação para a atual política externa brasileira.
"Desde a posse do atual presidente do Brasil, a decisão de uma política de alinhamento automático com os EUA e de apoio personalístico ao presidente Donald Trump sempre se mostrou muito arriscada, até mesmo insensata, e rompeu com a tradição da diplomacia brasileira e depreciou o padrão da política externa brasileira como uma política de Estado. Se Trump for derrotado na eleição de novembro próximo, o governo brasileiro enfrentará um problema adicional aos muitos já previstos no pós-pandemia", avalia o cientista político Arnaldo Francisco Cardoso, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.
Apesar das adversidades, o especialista destaca que, por ser Biden um "experiente observador da política internacional", caso ele seja eleito, ainda haverá "uma potencial agenda de cooperação em variados campos de interesse". No entanto, para que o Brasil possa aproveitar esse potencial da agenda bilateral, será necessário "reorientar sua política externa como política de Estado", para merecer o devido "respeito" e "ser visto como um parceiro relevante".
"Raramente, o Brasil ocupou espaço importante na agenda da política externa norte-americana, e, no governo Trump, isso não aconteceu. O apoio do governo Bolsonaro ao governo Trump é muito mais uma aposta brasileira, não uma reivindicação norte-americana. Diante de interesses pontuais de setores da sociedade norte-americana em relação ao Brasil, o presidente Trump fez chegar ao governo brasileiro essas demandas", disse Cardoso, também em entrevista à Sputnik Brasil.
Para o cientista político, a decisão da Casa Branca de pedir o apoio do Brasil a uma reformulação americana da OMS também é conjuntural, se explicando pelos ataques de autoridades brasileiras à organização e pelo cenário de desastre provocado pelo surto da COVID-19 no Brasil.
"Tristemente, no contexto dessa pandemia, o Brasil se tornou relevante pelo desastre que foi sua gestão da crise. Sermos o segundo país com o maior número de contágios e mortes e termos sido um dos parceiros de Trump no ataque à Organização Mundial da Saúde e a outras organizações internacionais nos fizeram o parceiro ideal, e talvez o único a aceitar esse papel."
Embora analistas identifiquem um claro interesse político do governo americano em reformar a OMS, a ideia de reestruturar essa organização, em si, não deve ser encarada como um ato político. Dadas as inúmeras críticas, pertinentes ou não, à entidade, Vinícius Guilherme Rodrigues Vieira considera que é cabível pensar em reformas, mas desde que sejam conduzidas com cuidado e seriedade, no sentido de fortalecer seus aspectos multilaterais.
"É dentro das organizações que se resolvem essas questões, e não saindo delas ou fazendo reformas que correm o risco, claramente, de torná-las sem sentido", afirma o professor da USP.