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Justiceiro ou super-herói: Brasil pode reformar suas polícias militares?

Protestos nos EUA contra a violência policial geram debates sobre a reforma das instituições de segurança em toda a América. O Brasil deve colocar esse tema na pauta? Temos condições para realizar reformas nas polícias militares?
Sputnik

Os protestos nos EUA contra a violência policial geram uma discussão abrangente sobre a necessidade de reforma nas polícias locais e nos sistemas judiciários.

No Brasil, há muitos anos se discute a necessidade de reforma das instituições de segurança. Termos como "desmilitarização" e "polícia cidadã" fazem parte do vocabulário da mídia e dos analistas de segurança pública do país.

A Sputnik Brasil conversou com dois especialistas em segurança pública com opiniões divergentes sobre o problema da violência policial, mas que concordam em muito mais pontos quando o assunto é encontrar soluções. 

Para o professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará Luiz Fábio Paiva, a segurança pública brasileira vive uma realidade "extremamente difícil".

"O sistema de policiamento brasileiro é uma tragédia [...] e um retrato da sociedade brasileira", disse Paiva à Sputnik Brasil. "Um sistema hierarquizado e estruturado para ser ineficiente e desigual."

O coronel da Brigada Militar e autor do livro "Policiamento Comunitário: como conquistar a confiança da Comunidade", Jorge Luiz Paz Bengochea, acredita que o sistema de policiamento brasileiro é responsabilizado injustamente por deficiências de outras instituições do país.

"As críticas contra as polícias militares são infundadas e revelam uma antipatia de interesses escusos, interessados em extinguir instituições [...] com longos serviços prestados à nação", disse Bengochea à Sputnik Brasil.

Para o coronel, as polícias "são o 'bode expiatório' das mazelas do sistema de Justiça Criminal, que não cumpre sua obrigação de assegurar a lei".

Justiceiro ou super-herói: Brasil pode reformar suas polícias militares?

Paiva reconhece que a Justiça brasileira é parte integral do problema de segurança pública do país:

"A quantidade de homicídios no Brasil que chegam a uma solução é baixíssima", apontou Paiva. "No Ceará, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, essa taxa não chega a 5%."

Ciclo completo

No Brasil, atividades essenciais para a manutenção da segurança são divididas entre as polícias: a Polícia Militar trabalha com o policiamento ostensivo e equipes táticas de contenção, enquanto a Polícia Civil realiza investigação e perícia.

"Os policiais não trabalham com um ciclo completo", disse Paiva. "Nesse sistema, perdemos de vista uma política global de segurança pública, que trabalhe a juventude, a assistência social e as condições urbanas."

Bengochea concorda, argumentando que a separação das funções "dificulta a maioria das incumbências policiais como investigações mais ágeis e corretas e o policiamento preventivo".

Para o coronel, essa é a fonte de um problema bastante conhecido pelos brasileiros: o "prende e solta".

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"Esse é um procedimento judicial que abala a confiança do cidadão em colaborar e acreditar na polícia. As polícias [...] dependem da Justiça e de execução penal severa para coibir, punir e dissuadir crimes", disse o coronel.

"Esta prática licenciosa com o crime quebra um dos pilares do policiamento comunitário que é a confiança do cidadão na sua polícia", notou Bengochea.

Justiceiro

Para Paiva, existem outros motivos pelos quais, de modo geral, a população não tem uma relação de confiança com as polícias.

"Nós temos uma quantidade muito grande de policiais envolvidos em situações de violência", que "sempre acontecem nas periferias urbanas, contra pessoas pobres e negras", apontou o professor.

Por trabalhar em um ambiente sabidamente violento, muitos defendem que o "policial tem o direito de usar a força".

"Isso tem criado no imaginário policial [...] a ideia de que o policial é uma autoridade que teria a possibilidade de fazer o que bem entende, inclusive atirar e matar, sem que isso lhe incorra em qualquer responsabilidade", argumentou Paiva.

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Ao contrário de Paiva, Bengochea não acredita que o racismo seja um problema estrutural da polícia brasileira.

"A maioria dos brasileiros e dos policiais brasileiros é negra, parda e branca com raízes africanas. Não há qualquer espécie de racismo no ambiente policial onde as oportunidades são as mesmas para todos", garantiu.

"O que há são ações isoladas por parte de alguns policiais despreparados que usam a truculência para se impor ou agem como justiceiros, acreditando na impunidade", reconheceu o coronel.

Bengochea aponta a falta de investimento como uma das razões pela perda de confiança entre as polícias e a população.

"As polícias do Brasil foram sucateadas ao longo do tempo [...] e tiveram que sair das pequenas cidades e passar a priorizar a contenção dos crimes com equipes táticas e guarnições reforçadas, abandonando a aproximação comunitária", lamentou Bengochea.

Reforma?

Apesar da situação da segurança pública brasileira apontar claramente para a necessidade de mudanças, nem o professor Paiva nem o coronel Bengochea acreditam que uma reforma esteja no horizonte institucional brasileiro.

Para Bengochea, a construção de uma polícia "realmente voltada ao cidadão, dentro de um verdadeiro Estado democrático de direito", só será possível quando houver quebra no ciclo de violência.

"Para construir um modelo de polícia cidadã, é necessário primeiro pacificar o Brasil, hoje tomado pela violência nas ruas, pelo tráfico nos morros e pela corrupção nos poderes", ponderou Bengochea.

O coronel acredita que "forças de elite, forças armadas, justiça coativa e leis antiterroristas" são essenciais para "desalojar facções e milícias dos morros e bairros".

"Depois de pacificado, [o Brasil] pode ter polícias voltadas ao cidadão e à preservação da ordem pública", concluiu o coronel.

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Paiva discorda que o país possa ser pacificado, enquanto tiver uma polícia "autorizada a agir com truculência", mas tampouco acredita que uma reforma seja possível no contexto atual.

"O modelo atual favorece uma elite de oficiais e delegados que desejam a continuidade de suas posições privilegiadas", argumentou Paiva.

"Eles não querem a renovação das instituições, mesmo com elas apresentando resultados deprimentes", lamentou.

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