O 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na última segunda-feira (19), mostrou que as mortes violentas voltaram a crescer no Brasil, chegando a um total de 25.712 óbitos no primeiro semestre deste ano. O índice representa um aumento de 7% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Por outro lado, o estudo apontou uma redução significativa de 24,2% nos registros de roubos, enquanto houve um aumento de apreensões de drogas realizadas pela Polícia Rodoviária Federal.
O sociólogo e membro do Laboratório de Análise da Violência, Ignacio Cano, declarou à Sputnik Brasil que já era esperado que os dados mostrassem uma diminuição no número de roubos, tendo em vista uma redução natural da criminalidade por conta da pandemia da COVID-19 e o isolamento social. Mas, em contraposição, o especialista classificou como "muito estranho" e "preocupante" a revelação sobre o aumento dos homicídios.
"Esse aumento acontece na grande maioria dos estados brasileiros, então não é um caso fora da curva, como o Ceará, mas a grande maioria dos estados brasileiros experimenta um aumento dos homicídios em um momento de pandemia. É um dado extremamente preocupante e é um desafio entender", afirmou.
O economista e presidente do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), Daniel Cerqueira, por sua vez, conversou com a Sputnik Brasil e elencou três fatores que podem ajudar a explicar o aumento da violência no primeiro semestre de 2020.
Difusão de armas de fogo
A primeira hipótese sustentada pelo especialista é de que a elevação dos homicídios está relacionada com a política armamentista de aumento da circulação de munição, incentivada por uma política nacional "irresponsável".
"Toda a estratégia do estatuto do desarmamento que vinha desde 2003, foi basicamente sucateada, foi desmontada. Houve inúmeras portarias, decretos presidenciais, uma política nacional que vai contra o conhecimento científico, que diz 'mais armas, mais crimes', uma política irresponsável", destacou Daniel Cerqueira.
De acordo com ele, esta política armamentista foi observada com mais ênfase a partir de 2019.
"A gente acredita que parte deste resultado já tenha a ver com essa política armamentista que a gente tem visto com um aumento enorme do número de armas em circulação", acrescentou.
Desde o início do governo de Jair Bolsonaro, foram adotadas 11 portarias e oito decretos facilitando o acesso a armas e munições. Uma reportagem apresentada pelo Fantástico em julho mostrou que, só em 2020, foram mais de 130 mil novas armas em circulação no país.
Disputa de facções criminosas
O presidente do IJSN destacou também que a pandemia da COVID-19 afetou o narcotráfico no varejo, levando a uma diminuição do consumo de drogas. Isto teria causado um recrudescimento das guerras entre as facções criminosas este ano.
"Essa é uma hipótese ainda, que muitos policiais defendem como correta. Mas essa diminuição na lucratividade no negócio de drogas gerou um incentivo para que facções que dominavam determinados territórios passassem a atacar territórios vizinhos, para retomar a lucratividade", argumentou Cerqueira.
O especialista lembrou que até 2016 "havia uma certa paz" entre as principais facções criminosas, como o PCC e o Comando Vermelho, e seus afiliados regionais, mas em 2016 "explodiu uma guerra muito intensa" que durou dois anos, crescendo muito o número de homicídios em alguns estados.
"Essa guerra durou cerca de um ano e meio, e depois veio um armistício, isto estaria por trás da queda em 2018 e 2019, sobretudo nos estados da região Norte e Nordeste. Agora em 2020 parece que estamos vendo novas disputas, sobretudo de pequenas facções locais em vários estados", acrescentou.
O especialista citou o caso do estado do Ceará como exemplo de um "caso típico" em que o número de homicídios "oscila ao sabor dos ciclos de violência e paz entre as facções criminosas".
"Então a cada ano, dois anos, tem um ciclo de paz, seguido por uma guerra, depois por paz entre as facções locais, e essas facções locais são parceiras dessas outras facções nacionais, como o Comando Vermelho e o PCC", afirmou.
Retorno à média estatística
O terceiro fator citado pelo especialista em segurança pública como possível razão para o aumento da violência em 2020 foi o que ele chamou de uma espécie de "retorno à média dos dados estatísticos".
"Quando você olha o padrão de crescimento dos homicídios no Brasil desde 1980, você vê que eventualmente a tendência de crescimento vai mudando para mais ou para menos. Só que o que a gente observou em 2018 e 2019 foi uma queda muito acentuada dos homicídios. Em 2018 essa queda superou a casa de 10%, o que não é comum no padrão de dados no Brasil", explicou Daniel Cerqueira.
De acordo com ele, "depois de uma queda muito grande, há uma tendência de retorno àquela média histórica".
"Dito de uma outra forma, 2018 e 2019 a gente teve um padrão de homicídios abaixo da média histórica que vinha anteriormente, e esse aumento agora pode ter a ver com o retorno a essa média de crescimento histórica", completou.