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Negacionismo não é inocente e ataque à ciência enfraquece democracia, avalia pesquisadora

Em entrevista à Sputnik Brasil, pesquisadora da área de história das ciências da Fiocruz avaliou as atuais tensões políticas em torno das vacinas contra a COVID-19 no Brasil traçando um paralelo com a Revolta da Vacina, ocorrida no início do século passado.
Sputnik

116 anos após a Revolta da Vacina, o Brasil volta a vivenciar um clima de tensão em torno da possibilidade de vacinação em massa contra uma doença que devasta o país, a COVID-19. 

​"Sem dúvida, são momentos históricos muito distintos. Mas é importante lembrar que os eventos epidêmicos sempre tiveram relação com a política. Historiadores das ciências sabem que não existe um fato puramente biológico, separado das instâncias sociais e histórico-culturais e as epidemias são eventos históricos que expõem as tensões sociais, como disse Richard Evans [historiador] num texto já clássico sobre o tema", explica, em entrevista à Sputnik Brasil, a pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz) Kaori Kodama, especialista em história das ciências biomédicas. 

O período da revolta do início do século XX, a cientista destaca, tratava de um momento de constituição da autoridade sanitária republicana, dentro de uma cultura extremamente autoritária por parte dos representantes políticos e das elites socioeconômicas, por um lado, e por outro, de um quadro de grande desconfiança da população, seja por crenças e práticas distintas da medicina acadêmica, seja porque, muitas vezes, os próprios serviços sanitários disponíveis não forneciam resultados confiáveis.

"No contexto da Revolta da Vacina, outros fatores foram importantes para a revolta da população, ligada a outras medidas autoritárias, como as reformas urbanas e o 'bota-abaixo', que despejou boa parte da população pobre do centro da cidade. Havia também politização por setores descontentes com a República. Havia também os que se opunham colocando como argumento a questão da liberdade individual. Mas após 1904, a partir dos anos seguintes, um número cada vez maior de pessoas buscou a vacina como forma de se prevenir da varíola."

No Brasil de hoje, a questão da vacinação contra o novo coronavírus ganhou contornos políticos e ideológicos extremos, a ponto de o presidente da República, Jair Bolsonaro, torcer contra uma vacina em potencial desenvolvida por uma empresa da China, país com o qual o atual governo brasileiro tem mantido relações difíceis desde que assumiu. Isso porque, além da origem chinesa, por aqui, os estudos sobre o imunizante, CoronaVac, são realizados em parceria com o estado de São Paulo, cujo governador, João Doria, é um dos principais desafetos do chefe de Estado e possível adversário nas eleições de 2022. 

Nesse cenário, em que ainda abundam notícias falsas sobre vacinas e desconfianças quanto à sua eficácia dependendo do país de origem, muitos brasileiros já demonstram resistência a uma ou outra vacina ou à vacinação em geral, como mostram estudos. Bolsonaro, por sua vez, já disse repetidamente que não pretende realizar uma vacinação em massa obrigatória, deixando a cargo dos indivíduos decidir se tomarão ou não a vacina adquirida pelo governo após aprovação do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). 

​"Creio que a resistência à vacina hoje se relaciona com outros negacionismos, como em relação à história do país (acerca da ditadura ou da suposta benevolência da escravidão) e em relação à ciência. Nenhum negacionismo é inocente, e há neles o interesse de estabelecer falseamentos sobre fatos e sobre o conhecimento, que deve ser um bem público, de todos. O ataque a esse bem público é uma forma de enfraquecer a democracia. Alguns creem que o que é 'obrigatório' é contra sua liberdade individual, a partir de uma visão que opõe estritamente o que é o social e o individual. Ora, não existe o individual sem os coletivos que o organizam", opina Kodama. 

Para a pesquisadora, são preocupantes as manifestações contra vacinas observadas atualmente no país, uma vez que "o sucesso da vacinação depende da adesão". A ciência, segundo ela, se realiza por consensos por parte dos que trabalham na produção de um determinado conhecimento, e todo esse processo é bastante complexo, envolvendo muitos agentes, muitas expertises e vários fóruns de debates e divulgação.

"Em um momento de crescimento do discurso de ódio e de polarização, esse mau uso e deturpação das informações advindas dos fatos científicos se torna uma arma perigosa. O papel da difusão da boa informação e do conhecimento é, portanto, fundamental."

A especialista avalia que o problema da descredibilização da ciência, observado atualmente, tem relação justamente com "os negacionismos e os interesses de grupos específicos, de um momento novo com a emergência das redes sociais, e com uma visão neoliberal que ainda tem muitos adeptos no Brasil, de que o Estado tem que ser mínimo, e que não vale a pena investir no bem público". 

​"Ora, a ciência produzida no Brasil é basicamente pública. Estamos sentindo já as consequências da falta de financiamento, e os recursos devem ser pensados para o conjunto da ciência, pois uma vacina específica não surge sem a compreensão de que é preciso formar, criar muitas áreas de conhecimento e frentes de pesquisa. Apesar de termos instituições científicas muito consolidadas e de excelência, de termos um sistema único de saúde, temos muitos desafios, fruto da inequidade social histórica. A vantagem de trazer essa discussão da vacina é a de podermos enxergar que ela é só uma ponta do iceberg. Agora, apesar de ter havido um crescimento de descrédito das vacinas, resultante desse momento particular histórico, acho que não devemos pensar que será cada vez pior. Mas é fundamental que garantamos valores comuns, de crença na vida e na produção de conhecimento." 

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