No dia 4 de novembro, o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed Ali, lançou operação militar contra a província de Tigré, localizada no norte de seu país.
Segundo o primeiro-ministro, tropas do partido governante da província, a Frente Popular de Libertação de Tigré (FPLT), teriam atacado bases das Forças Armadas, ferindo soldados e saqueando seus pertences.
Nesta segunda-feira (12), as Forças Armadas da Etiópia informaram estar "atingindo alvos com precisão" na província de Tigré, para "reestabelecer a ordem constitucional".
Apesar da etnia tigré corresponder a somente cerca de 6% da população do país, a FPLT dominou a política etíope durante décadas.
Com a chegada de Abiy Ahmed ao poder, o domínio tigré começou a retroceder, inclusive por esforços deliberados do governo central.
A decisão do primeiro-ministro de adiar as eleições parlamentares do país em função da pandemia foi a gota d'água para a FPLT.
"Abiy adiou as eleições porque entendeu que não conseguiria eleger uma maioria para continuar no cargo", disse o historiador militar Stanislav Mezentsev à Sputnik Brasil. "Foi uma decisão antidemocrática, viabilizada pela pandemia."
O partido tigré decidiu realizar as eleições na província que governa, mesmo sem autorização do governo central.
"Os tigré, que estão sendo marginalizados dos centros de poder, utilizaram essa chance para acusar o primeiro-ministro de violar os princípios democráticos e, apesar das regras da federação, conduzirem suas próprias eleições parlamentares", disse o pesquisador.
O governo central respondeu lançando uma operação militar. Experientes, as Forças Armadas etíopes cortaram toda a conectividade digital da região de Tigré, razão pela qual não há dados precisos sobre mortos e feridos.
Etiópia multinacional
Localizada na região do Chifre da África, a Etiópia é um dos países mais antigos do mundo.
"A Etiópia foi um grande império que reuniu diversos povos sob seu domínio [...] Hoje é um país multinacional, com 110 milhões de habitantes, composto por mais de 60 povos e etnias", disse Mezentsev.
Abiy Ahmed ascendeu ao poder em 2018 como um líder da renovação, disposto a empreender reformas políticas e econômicas profundas na Etiópia.
"Sua atuação me lembra a do [ex-líder soviético Mikhail] Gorbachev: um líder muito requisitado e bem recebido internacionalmente, mas que é encarado com certo ceticismo internamente", disse Mezentsev. "A política desafia as tradições etíopes."
O atual primeiro-ministro foi laureado com o Prêmio Nobel da Paz em 2019 por concluir o armistício entre a Etiópia e a Eritreia, países que se engajaram em conflito militar durante os anos de 1998 a 2000.
Suas reformas, no entanto, estão reacendendo antigos nacionalismos étnicos e tensões entre diversos estados dessa república multinacional, localizada no coração de uma das regiões mais instáveis do mundo.
Quem são os tigré?
A região de Tigré, localizada entre a Etiópia e a recém-independente Eritreia, tem 96% da população etnicamente tigré, de acordo com o censo etíope de 2007.
"A Frente Popular de Libertação de Tigré (FPLT) pode ser vista como um grupo de minoria étnica na Etiópia, porém com um histórico de considerável participação política", disse a pesquisadora do Laboratório de Estudos em História da África da UFSC Simoni Mendes à Sputnik Brasil.
De acordo com Mezentsev, o movimento é "extremante popular entre a população tigré".
"A FPLT acumulou uma experiência militar excepcional durante os anos da guerra entre Etiópia e Eritreia [...] Eles são guerreiros de verdade, oriundos de uma região montanhosa, com uma elite militarizada", disse o pesquisador.
"O grupo defendia a autonomia dos diferentes grupos étnicos [da Etiópia] através de um federalismo étnico", explicou Mendes. "Apesar do discurso de autonomia, a partir dos anos 2000 o grupo passou a ser acusado de exercer autoritarismo e viu seu poder político diminuir consideravelmente."
Apesar da experiência de combate, os tigré terão que enfrentar uma batalha assimétrica contra as forças etíopes.
"Não acredito que os tigré estejam recebendo apoio militar internacional nesse momento, uma vez que eles cruzaram uma linha vermelha ao se posicionar praticamente como um movimento separatista", disse Mezentsev.
Para Mendes, no entanto, " o movimento [tigray] não tem grandes interesses secessionistas".
"O FPLT é um movimento que durante muito tempo exerceu poder político na Etiópia, especialmente a partir de 1991, e que, possivelmente, gostaria de continuar exercendo esse poder no país", acredita a pesquisadora.
É uma guerra civil?
Apesar da operação militar de larga escala conduzida por Adis Abeba, não está claro se a situação no país configura guerra civil.
"Do ponto de vista dos tigré, sim, a Etiópia hoje vive uma guerra civil na qual o governo central ataca a população de sua etnia. Do ponto de vista do governo central, isso é uma operação para reestabelecer a ordem constitucional", disse Mezentsev.
Para ele "ainda não é possível falar em uma guerra total", uma vez que "a intenção do governo é realizar uma operação com poucas vítimas" e "resolver a situação rapidamente".
"Se o governo de Adis Abeba conseguir fazer isso, com certeza será uma vitória política", acredita o pesquisador.
Para Mendes, "analisando a história recente da Etiópia, considero sim que é possível que ocorra uma guerra civil" e os "bombardeios aéreos podem agravar ainda mais uma situação já tão delicada".
Impacto na região
A região do Chifre da África, composta por países como o Sudão, Somália, Eritreia e Djibuti, é considerada uma das mais voláteis do mundo.
"A região ainda conta com o mar Vermelho, que é a zona de trânsito de parte significativa do comércio internacional de petróleo e gás", lembrou Mezentsev.
Para ele, o conflito entre Adis Abeda e Tigré "significa o fim de qualquer sinal de estabilidade na região do Chifre da África".
"Para nós, analistas da região, a Etiópia era uma ilha de estabilidade em um oceano de problemas", revelou o pesquisador.
Para Menezes, os desdobramentos da política interna etíope influenciam diretamente os países vizinhos.
"A Eritreia, por exemplo, só se tornou independente da Etiópia nos anos de 1990, sendo o tratado de paz assinado entre os dois países muito recente", lembrou Menezes. "O próprio FPLT lutou junto com o movimento de libertação da Eritreia nos idos de 1991."
Além disso, os países do Chifre da África também estão ligados por "questões relativas a recursos naturais".
Um exemplo são "as águas do Nilo, que 86% do seu caudal parte da Etiópia e é de extrema importância para países da região e de outros pontos da África, como o Sudão e Sudão do Sul", disse.
"Qualquer problema interno na Etiópia pode gerar crises drásticas nos demais países da região", disse a pesquisadora.
Nesse contexto, a FPLT apelou à União Africana (UA) para que intervenha no conflito, a fim de evitar o avanço da operação conduzida por Adis Abeba.
"Uma intervenção da UA vai depender do grau de sucesso da operação do governo central", disse Mezentsev. "Caso o governo não consiga finalizar a operação rápido e com um número limitado de vítimas, a pressão sobre ele tende a aumentar."
De acordo com as autoridades do Sudão, cerca de 8.000 refugiados já chegaram ao país devido aos combates na região de Tigré, no norte da Etiópia. No total, mais de 200 mil pessoas devem chegar em poucos dias à província sudanesa de Al Qadarif, localizada no sudeste do país.
No dia 6 de novembro, o secretário-geral da ONU, António Guterres, expressou alarme com os relatos de confrontos entre as Forças Armadas da Etiópia e o partido que governa a província etíope de Tigré. "A estabilidade da Etiópia é importante para toda a região do Chifre da África", escreveu Guterres em sua conta no Twitter, pedindo "solução pacífica para a disputa".
No dia 4 de novembro, Etiópia iniciou operação militar na região de Tigré, localizada na fronteira norte do país.
De acordo com o governo de Adis Ababa, a Frente Popular para a Libertação de Tigré teria realizado ataques contra instalações das Forças Armadas etíopes na região. De acordo com o primeiro-ministro do país, Abiy Abhmed, o ataque causou "muitos mártires, feridos e propriedades danificadas". A FPLT nega que tenha realizado ataques à forças do governo.
O grupo de monitoramento de Internet, Netblocks, reportou no dia 4 de novembro que a região de Tigré foi bloqueada da rede mundial de computadores.