Um abaixo-assinado virtual com o objetivo de que o processo da regularização de fonoaudiólogos brasileiros em Portugal ocorra de forma legítima e transparente estima que haja mais de dois mil profissionais "vítimas dessa ação irregular, de cunho ilegal e xenofóbico, que se caracteriza pelo preconceito linguístico". Segundo o professor português António Veira, terapeuta da fala (nomenclatura dada aos fonoaudiólogos em Portugal), "há de 2.200 a 2.500 pedidos de fonoaudiólogos para aquisição da [cédula de] terapia da fala em Portugal e que estão quase todos a ser indeferidos".
A Sputnik Brasil conversou com três fonoaudiólogas brasileiras que tiveram o pedido de cédula profissional indeferido pela ACSS após quase um ano de espera pela resposta. O indeferimento, nesses casos, apresenta a justificativa idêntica de que, "durante a prova linguística, a requerente demonstrou não dominar o português europeu nos diferentes domínios semântico, morfossintático, fonético-fonológico, quer na vertente oral quer na vertente escrita".
A "prova" em questão se trata de uma entrevista presencial de meia hora e uma redação, aplicadas a candidatos brasileiros a partir de 2019, mas sem prazo para resultados. Até então, a ACSS exigia apenas o envio de "declaração original emitida por um terapeuta da fala (devidamente autorizado a exercer em Portugal) em como não possui qualquer perturbação da fala e ou da voz e domina a língua portuguesa tal como é falada ou escrita".
No meio do processo de candidatos que deram entrada no pedido de cédula profissional, passou-se a cobrar o domínio da "língua portuguesa tal como é falada ou escrita em Portugal (português europeu)". A mudança das regras pegou de surpresa fonoaudiólogas brasileiras como Juliana Alves de Andrade, que chegou a Cascais para morar com o marido em março de 2019 e, logo na sequência, deu início ao processo. Ela também foi surpreendida com o e-mail de uma funcionária da ACSS solicitando um "comprovativo/declaração do domínio do português europeu, falado e escrito, ao nível C2", algo que não era pedido no site como parte do processo.
"Questionei onde eu conseguiria fazer essa prova e não souberam me orientar. Fui então na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que é o local onde os estrangeiros fazem esse tipo de prova. A diretora do Centro de Avaliação e Certificação de Português Língua Estrangeira (CAPLE) riu e disse que isso era um absurdo! Porque eu, enquanto brasileira, tinha o português como língua materna e não poderia fazer [a prova]", conta Juliana em entrevista à Sputnik Brasil.
Certificados de universidades não fazem distinção entre português europeu e brasileiro
O Diploma Universitário de Português como Língua Estrangeira (DUPLE), ofertado pela Universidade de Lisboa, não faz distinção entre o português europeu e o português falado no Brasil, assim como ocorre em outras universidades portuguesas e brasileiras. O site da ACSS informa que "os comprovativos são obtidos junto de estabelecimentos de ensino superior ou em escolas devidamente certificadas para o efeito, relativamente a cada profissão".
No entanto, o próprio quadro de níveis da língua por Deliberação do Conselho Diretivo de 26 de julho de 2018 não apresenta nenhuma exigência de português europeu aos profissionais de terapia da fala (fonoaudiologia). No caso dos profissionais de ortoprotésia, por exemplo, responsáveis pela avaliação de indivíduos com problemas motores ou posturais, o quadro faz a ressalva de que "candidatos cuja formação tenha sido obtida num país de língua portuguesa ou tenha exercido + de 12 anos num país de língua portuguesa, apresenta (sic) declaração que comprove a integridade de comunicação falada e escrita em português europeu".
Sem saber o que fazer, Juliana tentou recorrer à Embaixada do Brasil em Lisboa.
"Um funcionário da embaixada disse-me que essas questões diplomáticas eram mesmo muito complicadas e que era para eu procurar a Provedoria de Justiça. Foi o que eu fiz. Entretanto, nada foi conseguido por esse órgão que tenta estabelecer 'diálogos'", lamenta a fonoaudióloga paulista.
Questionado pela Sputnik Brasil a respeito da situação de fonoaudiólogos brasileiros que não conseguem trabalhar em Portugal, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil informou que, por meio de sua rede de consulados e embaixada em Portugal, presta toda a assistência legal e material possível aos brasileiros no país, respeitando os tratados internacionais vigentes e a legislação local, conforme estabelecido pela Convenção de Viena sobre Relações Consulares, o Regimento Interno da Secretaria de Estado das Relações Exteriores e o Manual de Serviço Consular e Jurídico do Itamaraty.
"É necessário, porém, compreender que cada país é soberano para definir suas próprias regras de habilitação de estrangeiros para exercício profissional em seu território. Nesse sentido, indivíduos que se sintam prejudicadas (sic) deverão procurar levar seus questionamentos diretamente aos órgãos locais competentes. Sabendo do significado social dessa questão e de outras correlatas, o Itamaraty e as repartições diplomáticas e consulares brasileiras em Portugal mantêm diálogo bilateral com aquele país, no qual assuntos dessa natureza são apresentados", lê-se na nota enviada à Sputnik Brasil pela assessoria de imprensa do Itamaraty.
Como isso não resolve o problema de Juliana, ela foi à luta. Em 29 de novembro de 2019, foi convocada para uma "prova linguística" pela ACSS. Sem bibliografia nem roteiro para estudar, ela foi para Lisboa fazer o exame no mesmo dia que várias outras fonoaudiólogas brasileiras. Segundo ela, as avaliadoras foram uma representante da APTF (Associação Portuguesa de Terapia da Fala) e outra da SPTF (Sociedade Portuguesa de Terapia da Fala). A "prova" levou apenas meia hora, mas o resultado só saiu em 13 de agosto de 2020.
"Eu esperava uma prova, mas foi uma espécie de entrevista de 20 minutos. Me perguntaram por que eu tinha me mudado para Portugal, o que eu fazia no Brasil, se já tinha feito cursos cá. E, nos outros dez, pediram para eu fazer uma redação. Detalhe: quando fui convocada para essa prova por telefone, me falaram que o tema da redação seria livre, mas não foi. O tema foi sobre o impacto da tecnologia para o desenvolvimento infantil. Em agosto de 2020, recebi o indeferimento. A justificativa foi de que eu não dominava os níveis de linguagem! Se eu não dominasse, não teria conversado por 20 minutos com elas! Quando alguém não domina níveis de linguagem, não se estabelece diálogo! Fora que esse parecer não compete a um terapeuta de fala, mas sim a um linguista", compara Juliana.
Depois de esperar por quase dez meses pelo resultado, ela teve um prazo de apenas dez dias para recorrer. Juliana interpôs um recurso de 37 páginas, com participação de um advogado e fundamentação linguística de que a língua portuguesa é uma só, com variações linguísticas, assim como as encontradas dentro das próprias regiões de Portugal. No dia 6 de novembro, recebeu a resposta de duas páginas: manutenção do indeferimento, segundo ela, idêntico ao das outras fonoaudiólogas que recorreram.
Presidente do Conselho Diretivo comete erros de concordância e ortografia em indeferimento
Em um dos trechos do indeferimento, Márcia Raquel Inácio Roque, presidente do Conselho Diretivo, comete um erro de concordância verbal para avaliar a capacidade linguística de Juliana, além de desrespeitar o Acordo Ortográfico.
"A avaliação e análise lexical, morfo-sintática (sic), fonética e fonológica é (sic) fundamental para um diagnóstico diferencial e uma intervenção atempada. A compreensão entre o utente [paciente] e o profissional é, também ela, imperiosa em todo o contexto clínico podendo até, em situações mais específicas, como é o caso da disfagia, pôr em causa a segurança do utente", lê-se no documento a que a Sputnik Brasil teve acesso.
Ironicamente, Juliana já deu até palestra sobre disfagia num evento sobre envelhecimento e Alzheimer em Portugal. Ela tem permissão para ministrar cursos na área de formação dela em Portugal, pois tem um Certificado de Competências Pedagógicas, pelo qual pagou €170 (aproximadamente R$ 1.088). Somados aos €50 (cerca de R$ 320) que pagou para dar entrada no pedido de cédula profissional, ela já gastou mais de R$ 1.400 apenas com documentos. Ou seja: pode ensinar a teoria sobre sua profissão, mas, na prática, não pode exercê-la. Com mestrado em fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ela, que pretende recorrer ao Ministério Público, vive um misto de tristeza e esperança:
"Fico triste e decepcionada com essa situação. Vim com um sentimento grande de partilha, de somar o que sei com o que descobriria além-mar. Cheguei muito animada e disposta a contribuir! Mas sinto que Portugal não nos quer, não dessa forma. Mas ainda tenho esperanças! Somos muitos brasileiros aqui e muitos precisam da nossa ajuda".
Ela não está sozinha na sua tristeza. A fonoaudióloga Viviane Cazamajou enfrentou uma trajetória semelhante, com o agravante de que teve os pedidos de cédula profissional recusados para terapia da fala e para audiologia. No Brasil, as duas habilitações estão inseridas na formação em fonoaudiologia, mas, em Portugal, são faculdades separadas. Depois de pagar €100 (por volta de R$ 640), viajar de Braga, onde mora com o marido, para fazer a "prova" no mesmo dia em que Juliana, em Lisboa, ela teve os pedidos indeferidos. Agora, vai começar licenciatura em audiologia no Porto e tentar equivalência de algumas disciplinas que já cursou para poder finalmente trabalhar.
"Quando dei entrada, a funcionária de recursos humanos já falou que audiologia era muito difícil conseguir, que até agora ninguém tinha conseguido, mas mesmo assim dei entrada pois tenho experiência. Na 'prova' de terapia da fala, falei que tinha dado entrada em ambas, pois no Brasil eu atuava como audiologista e como fonoaudióloga em disfagia e voz. Uma das avaliadoras riu e falou que era impossível eu ter as duas cédulas, que eu teria que escolher uma. Porém, tenho experiências comprovadas. Saí de lá a chorar. Como amo audiologia, estou indo pela faculdade. Mas terei que estudar não sei quanto tempo ainda para concluir. E, depois, dar entrada na ACSS de novo", explica a catarinense, que se formou no Mato Grosso, morou na Paraíba e em Rondônia, estados com sotaques bem diferentes, mas nunca teve problemas com variações linguísticas em seu trabalho.
Carioca vai mudar de área por não poder trabalhar com audiologia em Portugal
O mesmo pode se dizer da carioca Alessandra Costa Penna França. Com mestrado em fonoaudiologia pela centenária Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-graduação em audiologia pelo Centro de Especialização em Fonoaudiologia Clínica (CEFAC-RJ/SP), ela se mudou para Cascais no fim de 2018, pois o marido teve uma oportunidade de trabalho em Portugal. Com uma carreira consolidada no Brasil, Alessandra tentou fazer a equivalência em audiologia pela Universidade do Porto, mas não conseguiu. Tendo o pedido de cédula profissional também indeferido pela ACSS, agora, ela está mudando de área.
"Após mais de oito meses sem resposta, busquei contato e precisei ir pessoalmente à Universidade do Porto, onde fui informada de que o pedido foi indeferido, sem mais informações, mesmo com pós-graduação e mestrado. Após mais um pedido de reunião presencial com o diretor do curso, fui informada de que precisaria complementar módulos presencialmente (quase dois anos a mais de curso e, além disso, realizar estágio profissional), mesmo tendo mais de dez anos de experiência. Porém, quase dois anos depois sigo sem respostas sobre quais modelos estão pendentes e como poderia realizá-los. Como também recebi indeferimento da ACSS sem qualquer explicação, decidi iniciar uma nova formação, em educação infantil, para que eu possa finalmente iniciar uma carreira profissional em Portugal", conta Alessandra à Sputnik Brasil.
As três brasileiras fazem parte de um grupo de WhatsApp com outras 40 fonoaudiólogas na mesma situação. Por dois dias, a Sputnik Brasil cobrou respostas do Ministério da Saúde e da ACSS, mas não obteve retorno aos questionamentos enviados por e-mail até o fechamento desta reportagem.