A organização não governamental Terra de Direitos e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) enviaram à secretária executiva adjunta da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Maria Claudia Pulido, um pedido de medidas cautelares contra o governo brasileiro por conta da situação de calamidade enfrentada pela população do Amapá, sobretudo pelas comunidades quilombolas, em razão do blecaute que atingiu o estado neste mês.
Por conta de um incêndio em uma subestação de energia no início de novembro, quase todos os habitantes do Amapá enfrentaram um grande apagão que provocou uma série de consequências graves. Além da falta de eletricidade, muitos sofreram também com escassez de água potável e de alimentos, tornando a situação ainda mais difícil por conta da pandemia da COVID-19.
Na denúncia, à qual a Sputnik Brasil teve acesso, as organizações culpam o Estado brasileiro de falhar em garantir os direitos de 258 comunidades quilombolas, ao não agir "de maneira diligente para acelerar e regularizar a transmissão de energia".
"O Estado brasileiro assiste silente uma das maiores crises humanitárias da história do país, em plena pandemia da COVID-19. A falha do Estado do Brasil em adotar medidas sérias, necessárias e urgentes para garantir os direitos da população sob sua jurisdição viola suas obrigações contidas no artigo 1.1 da CADH [Convenção Americana de Direitos Humanos]", diz o texto. "A demora já causou danos irreparáveis aos cidadãos amapaenses, especialmente nas comunidades mais vulneráveis, como o povo quilombola, que, neste dia 18 de novembro, perdeu uma de suas lideranças, Sr. Sérgio Clei Almeida, presidente da Comunidade do São Francisco do Matapi, que faleceu em decorrência de uma descarga elétrica causada pela oscilação no abastecimento."
De acordo com o advogado Pedro Martins, assessor jurídico da Terra de Direitos, desde 2019, as autoridades brasileiras já estavam cientes sobre riscos ao sistema de transmissão de energia no estado do Amapá. Investigações já estavam sendo encaminhadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica e pelo Tribunal de Contas da União devido a falhas nesse sistema, apontando para erros da concessionária Linhas de Macapá Transmissora de Energia S.A. (LMTE), empresa privada do grupo Gemini Energy, na administração da rede.
Em entrevista à Sputnik Brasil, o especialista denuncia a falta de fiscalização e de operacionalização regular do sistema de transmissão pela LMTE, afirmando que, apesar do tamanho do problema, este poderia ter sido solucionado há mais tempo.
"Ele poderia ter sido resolvido. A forma de abastecimento de energia da população de todo o estado do Amapá já era comprometida por conta de depender da hidrelétrica de Tucuruí e de todo um sistema de retransmissão dentro do estado que parecia ser feito em péssimas condições, e que, nesse momento, levou a um primeiro apagão, em 3 de novembro. Sendo que já havia tido uma medida, por volta do dia 16 de novembro, de novos geradores, de grupos transmissores no estado do Amapá, o que ocasionou um novo apagão, ali pela semana do 17, 18 de novembro. E em decorrência dessa mudança também na energia que faleceu uma liderança quilombola no estado do Amapá, por uma descarga elétrica."
No último final de semana, o presidente Jair Bolsonaro foi a Macapá participar da ligação de geradores termoelétricos e anunciar uma medida provisória de isenção da conta de energia para os consumidores afetados pelo blecaute. E, nesta quarta-feira (25), o chefe de Estado brasileiro anunciou em suas redes sociais que 100% do abastecimento no Amapá já teria sido recuperado.
Entre as reclamações presentes na denúncia apresentada à CIDH, uma das violações de direitos relatada trata da violência que agentes da polícia teriam utilizado para reprimir protestos de moradores contra a demora do poder público em agir para resolver a situação de calamidade.
"A comissão precisa cobrar do Estado brasileiro a adoção de medidas necessárias para coibir essa ação da violência policial. Porque as manifestações foram em decorrência da violação de direitos de acesso à energia e, relacionado a isso, direito à vida, direito à segurança alimentar, direito à água. Mas também pelo fato de que, quando é estabelecido o sistema de rodízio, pelo menos na capital, Macapá, esse sistema de rodízio não foi proporcional a todos os bairros. Ou seja, a retomada da energia elétrica no Amapá privilegiou alguns bairros de elite, alguns locais de maior poder aquisitivo dentro do estado do Amapá, enquanto outra parte da população não conseguiu ter acesso mínimo a esse rodízio inicial de energia", explica Martins.
Ainda de acordo com o assessor jurídico da Terra de Direitos, não houve, até o momento, uma explicação detalhada por parte das autoridades sobre o que aconteceu de fato no Amapá e sobre todas as medidas que foram tomadas em resposta a esse grave problema.
"Mesmo sendo restabelecida a energia, existe todo um impacto que não é possível ter fácil reparação."
Medidas cautelares solicitadas à CIDH
No documento enviado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Terra de Direitos e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas pediram ajuda ao órgão para fazer com que o Estado brasileiro:
1. Restabeleça, imediatamente, os serviços de distribuição de energia elétrica em todo Estado do Amapá, garantindo acesso ao serviço essencial a todas as comunidades quilombolas, inclusive aquelas privadas do fornecimento antes do "apagão";
2. Envie ajuda humanitária para as populações quilombolas afetadas com distribuição imediata de água potável e à alimentação, enquanto durar a falta de abastecimento de água e eletricidade;
3. Distribua imediatamente equipamentos de proteção individual (máscaras e outros), água potável em quantidade suficiente para a sobrevivência das populações residentes nos quilombos e materiais de higiene e desinfecção às comunidades quilombolas;
4. Garanta a infraestrutura necessária para que todas as pessoas das comunidades afetadas tenham acesso aos hospitais e a tratamento de saúde adequados;
5. Adote as medidas necessárias para coibir ações de violência policial contra comunidades quilombolas, apurando os episódios já denunciados e responsabilizando os envolvidos;
6. Apure as circunstâncias que ocasionaram a morte da liderança quilombola, Sr. Sergio Clei, bem como adote devidas providências para responsabilização dos envolvidos (direta e indiretamente) e para indenização de seus familiares;
7. Constitua uma Comissão Especial ou um Grupo de Trabalho com função específica de mapear e reparar os danos sofridos pelas comunidades quilombolas em decorrência do desabastecimento de energia.