Batizado pelos autores do estudo de Ubirajara jubatus, o dinossauro, do tamanho aproximado de uma galinha, teria vivido há 110 milhões de anos na Bacia do Araripe, no Nordeste brasileiro. Sua exuberância viria de uma espécie de crina ao longo do dorso e de um par de "fitas" alongadas e rígidas que sairiam do ombro.
Segundo a pesquisa, essas características nunca tinham sido encontradas antes em dinossauros. A aparência exótica guardaria semelhança com os modernos pavões, demonstrando que a capacidade de se exibir pode ter surgido há milhares de anos.
Embora pesquisadores brasileiros reconheçam a importância da descoberta, a maneira como os fósseis, encontrados em uma pedreira, entre os municípios de Nova Olinda e Santana do Cariri, saíram do Brasil, em 1995, provocou polêmica.
O paleontólogo Alexandre Kellner, diretor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, questiona a legalidade do transporte do material.
"No máximo, o material poderia ter saído do Brasil por empréstimo. Possivelmente o fóssil saiu de forma ilegal. Pode até ter havido uma brecha jurídica para se conseguir isso, o que não torna o ato menos antiético e imoral", disse o especialista à Sputnik Brasil.
'Retirada não foi ilegal'
Outros pesquisadores também questionaram se a retirada do material do país ocorreu de acordo com a lei. No Twitter, surgiu até a hashtag #UbirajaraBelongsToBR (Ubirajara pertence ao Brasil).
De acordo com a Constituição, qualquer material fóssil encontrado dentro do território brasileiro é propriedade da União. Um decreto-lei de 1942, sem mencionar a questão da retirada de bens do país, diz que a "extração de espécimes fósseis depende de autorização prévia e fiscalização do Departamento Nacional de Produção Mineral, do Ministério da Agricultura".
Por outro lado, uma portaria do Ministério da Ciência e Tecnologia, de 1990, afirma que materiais científicos só podem sair do Brasil para o exterior com algumas condições: que a pesquisa tenha participação de um cientista brasileiro e que o material seja devolvido.
Os autores que descreveram o Ubirajara Jubatus são do México, Reino Unido e Alemanha. O fóssil está guardado até hoje no Museu Estadual de História Natural Karlsruhe, na Alemanha.
Procurado pela reportagem da Sputnik Brasil, o paleontólogo David Martill, professor da Universidade de Portsmouth, disse que "a retirada do espécime não foi ilegal, tendo sido autorizada pelo DNPM [Departamento Nacional de Produção Mineral] do estado do Ceará".
'Evidências documentais'
O editor da revista científica Cretaceous Research, o brasileiro Eduardo Koutsoukos, disse à Sputnik Brasil que "os autores têm evidências documentais para essa declaração", mas ressaltou que "é de inteira responsabilidade dos autores e da instituição de repositório ter toda a documentação legal referida no trabalho, como testemunho da verdade, e exibir quando solicitado oficialmente, mas não compete isso à revista, a não ser que os autores assim o solicitem".
Esta reportagem procurou o museu na cidade alemã de Karlsruhe onde os fósseis estão armazenados, mas não obteve resposta. Matéria da revista Galileu publicou documento enviado pela instituição com a autorização do DNPM para a retirada do material do Brasil, datado de 1º de fevereiro de 1995.
De acordo com fontes ouvidas pela Sputnik Brasil, o funcionário que concedeu a permissão está aposentado. O documento autoriza o pesquisador alemão Erbehard Frey a "transportar duas caixas contendo amostras calcárias com fósseis, sem nenhum valor comercial, com o objetivo precípuo de proceder estudos paleontológicos" no museu de Karlsruhe.
A Bacia do Araripe, localizada entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, possui um dos mais ricos sítios paleontológicos de idade cretácica do mundo. O DNPM deixou de ser ligado ao Ministério da Agricultura e passou a ser subordinado à pasta de Minas e Energia.
Agência Nacional de Mineração
Após reformulação, em 2018, o DNPM passou a ser chamado de Agência Nacional de Mineração (ANM). Com isso, vários escritórios regionais do órgão deixaram de existir, inclusive o localizado em Crato, no Ceará, que era responsável pela Bacia do Araripe.
O antigo diretor do escritório regional do DNPM na cidade, Artur Andrade, disse à Sputnik Brasil que está ajudando a conduzir um levantamento nos arquivos do escritório do Crato para descobrir se houve algum tipo de ilegalidade na retirada do fóssil.
Andrade, que começou a trabalhar no DPNM em 1996, atualmente despacha de Fortaleza. Ele disse que não acredita em "má fé" de algum funcionário do órgão para a liberação do material, mas talvez uma espécie de descuido.
O geólogo disse que, na ocasião, os responsáveis pelo órgão podem não ter percebido a importância do que tinham em mãos.
"É preciso um trabalho cuidadoso para se verificar a importância do material coletado. Muitas vezes são rochas calcárias, que tanta gente leva, e onde depois se descobre algo importante", ponderou Andrade.
O antigo diretor do escritório de Crato também afirmou que o transporte do fóssil foi um erro, mas a Bacia de Araripe precisa ser aberta para todos os pesquisadores, e não restrita a apenas um grupo. Ele disse ainda que existem milhares de peças provenientes do Brasil em instituições mundo afora, e que seria impossível retornar todas elas.
'Qual a competência de um paleontólogo?'
Segundo Andrade, o fóssil, por ser um holótipo (exemplar único que serve de referência para outras pesquisas), não poderia ter saído do Brasil. Ele afirmou ainda que, até 2014, a retirada de material da Bacia do Araripe era feita de forma "muito frouxa", muitas vezes de "forma verbal".
Procurada pela reportagem da Sputnik Brasil, a Agência Nacional de Mineração (ANM) não se pronunciou sobre a questão.
Se Andrade considera que funcionários do DNPM podem não ter percebido a importância do material, o diretor do Museu Nacional, por sua vez, acha que os paleontólogos estrangeiros sabiam o que tinham descoberto.
"A primeira vez que se achou um dinossauro com esse tipo de estrutura foi em 1996, na China. Quer dizer que, em 1995, nós já tínhamos um exemplar desse e o paleontólogo não viu? Qual a competência de um paleontólogo que tem em mãos um exemplar com essa preservação de tecido mole, que envolve estrutura que hoje chamamos de penas, ou protopenas, uma estrutura filamentosa cobrindo o corpo do animal, mas não reconhece isso como importante e demora 25 anos para descrever a espécie?", questionou Alexandre Kellner.
'Houve um pesquisador brasileiro'
Em relação à obrigatoriedade da presença de um cientista brasileiro como parte do estudo sobre o fóssil retirado, o pesquisador britânico David Martill disse que "houve um pesquisador brasileiro", "mas, infelizmente, aconteceu um problema e ele fraudou suas qualificações para estudar na Alemanha e foi expulso do programa".
"Foi um incidente muito infeliz e constrangedor para o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], o museu Karlsruhe e, claro, a pessoa em questão. Seria errado da minha parte nomeá-lo aqui. Deixo isso para o CNPq", afirmou o paleontólogo.
Procurado pela reportagem da Sputnik Brasil, o CNPq não confirmou a existência do pesquisador brasileiro e se teve ciência, à época dos fatos, de sua suposta fraude.
'Não dou a mínima'
Martill é um velho conhecido da paleontologia brasileira. Em 2015, a descrição de um fóssil de cobra com quatro patas, a Tetrapodophis amplectus, gerou polêmica parecida com a do Ubirajara Jubatus. O material foi recolhido na Formação Crato e levado para fora do país, levantando suspeitas de irregularidades.
"Quando vejo um fóssil em um museu e trabalho em cima dele, a forma como o material chegou à instituição não me preocupa nem um pouco. Na verdade, eu sequer penso nisso, e muitos pesquisadores têm a mesma atitude. No passado eu fui citado como tendo dito que não dava a mínima para isso […]. Esse continua sendo o caso", disse o professor da Universidade de Portsmouth.
Martill afirmou que o retorno do fóssil para o Brasil "seria uma coisa legal", mas disse que "seria uma boa oportunidade também para convidar os Museus de História Natural de Londres e de Nova York a devolverem os milhares de exemplares brasileiros que possuem em suas coleções".
'Prejudica comunidade vibrante'
O diretor do Museu Nacional, por sua vez, argumentou que a existência de uma vasta coleção em instituições brasileiras "atrai bons pesquisadores, que fazem bons projetos, que, por sua vez, fazem o avanço da ciência".
"O fato de fósseis importantes estarem fora do país prejudica uma comunidade vibrante de novos paleontólogos, que fica muito triste em ver esse comportamento antiético. O Brasil não é mais uma colônia, onde pesquisadores chegam e levam o que querem e fica por isso mesmo. Devolvam o fóssil para o Brasil", exigiu Alexandre Kellner.