O ano de 2020 é forte candidato para um dos piores da história humana. Pandemia, alagamentos, furacões, fome, assassinatos e guerras formam um cenário que só parecia possível em relatos bíblicos ou proféticos. Mas foi exatamente isso que vivemos nesse ano, e, pior, chegamos a nos acostumar com tanta adversidade.
Os mais otimistas lembram que é necessário chegar ao fundo do poço para poder sair dele. Por isso, após tantas crises e tragédias, 2021 deveria nos reservar algo melhor.
Mas um olhar mais atento aos acontecimentos deste ano aponta que ele começa e termina com eventos muito similares: o assassinato de membros do alto escalão da elite iraniana e uma mutação que potencializa um vírus mortal.
Essa repetição nos faz sentir como se estivéssemos dentro de um dos círculos do inferno de Dante Alighieri, fadados a uma nova série de infortúnios, antes mesmo de nos recuperarmos da primeira.
Vamos recordar os piores momentos de 2020, ano que, como a serpente que come o próprio rabo, termina onde começou: fechando-se sobre seu próprio ciclo.
Assassinato do major-general iraniano Qassem Soleimani pelos EUA, 2 de janeiro
O ano mal começara quando foi anunciado o assassinato do major-general iraniano, Qassem Soleimani, por um ataque de drones norte-americanos no aeroporto de Bagdá, no Iraque.
Comandante das forças Quds, o general era admirado por muitos islâmicos xiitas ao redor do Oriente Médio. Uma resposta iraniana ao assassinato deixaria o mundo à beira de um conflito de larga escala.
"Essa notícia acabou com as minhas comemorações de Ano Novo. Passei os dias seguintes todos grudada na tela do computador", disse a iranista Polina Vasilenko à Sputnik Brasil. "Do dia 3 até o dia 10, esperávamos de fato que uma guerra fosse começar."
O Irã respondeu à sua maneira: lançou mísseis balísticos contra duas bases ocupadas pelos EUA no Iraque, ferindo soldados norte-americanos, que teriam sofrido concussões cerebrais.
"Sabemos que os norte-americanos normalmente reagem a esse tipo de ataque", disse Vasilenko. "Mas posteriormente veio a público que autoridades iranianas avisaram com antecedência que realizariam essa operação."
Naquela época, ninguém poderia prever que, no fim do ano, mais um membro do alto escalão da elite governante iraniana seria assassinado, e o mundo ficaria novamente a um passo da guerra.
Um conflito em larga escala foi evitado, mas, como é de praxe, inocentes acabaram pagando a conta da escalada militar.
Em alerta vermelho após os ataques às instalações com norte-americanos no Iraque, controladores iranianos confundiram um Boeing 737 das Linhas Aéreas Internacionais Ucranianas com um míssil, e abateram a aeronave, matando 176 passageiros.
OMS é notificada sobre a existência de novo coronavírus na China, 7 de janeiro
Na primeira semana do ano, uma guerra diferente foi anunciada: entre a humanidade e um vírus. Em 7 de janeiro, a filial chinesa da Organização Mundial da Saúde (OMS) é oficialmente notificada sobre a existência do novo coronavírus, então conhecido como 2019-nCoV.
O vírus teria sofrido uma mutação genética, tornando-se capaz de infectar seres humanos. Na época, não sabíamos que, no final do ano, outra mutação ocorreria nesse mesmo vírus, podendo tê-lo tornado ainda mais transmissível.
Casos da COVID-19 vinham sendo reportados desde novembro de 2019, mas é em 11 de janeiro que a China reporta a primeira morte causada pelo novo vírus, na cidade de Wuhan, na província de Hubei.
A vítima foi um homem de 61 anos, que desenvolveu grave pneumonia após contrair a COVID-19. Depois dele, mais 1.704.680 pessoas viriam a falecer em circunstâncias similares, 187 mil delas só no Brasil.
Incêndios florestais na Austrália
Não obstante as crises sanitária e militar, o mês de janeiro ainda ficou marcado por uma grave crise ambiental que matou pelo menos um bilhão de animais nos incêndios florestais na Austrália.
De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, mais de 18 milhões de hectares foram destruídos no país. A perda do habitat natural fez com que milhares de animais morressem nas semanas e meses que se seguiram à tragédia.
Mas um ano como 2020 não concentraria seu poder de fogo somente no primeiro semestre: entre agosto e novembro, incêndios florestais causaram a perda de quase nove milhões de acres de terra na Califórnia, 2,3 milhões a mais do que na temporada seca do ano anterior, informou o Centro Nacional Interagências para Incêndios (NIFC, na sigla em inglês).
Em 6 de dezembro, em pleno inverno no Hemisfério Norte, mais um incêndio de grandes proporções atingiu a região sul da Califórnia, destruindo cerca de sete mil acres e obrigando milhares de pessoas a deixar suas casas no condado de Orange. O ano de 2020 parece terminar com tanto fogo quanto começou.
Reino Unido sai oficialmente da União Europeia, 31 de janeiro
Financistas do mundo todo começaram o ano apreensivos, em função da saída do Reino Unido da União Europeia, planejada para 31 de janeiro.
Sem chegar a um acordo que satisfizesse as demandas de ambas as partes, as expectativas eram de uma separação caótica, com caminhões de carga detidos nas fronteiras e falta de produtos nos supermercados britânicos.
Na ocasião, as autoridades de Londres e Bruxelas encontraram uma saída à francesa, e adiaram as negociações sobre as relações comerciais entre o Reino Unido e o bloco para o final do ano.
Em 31 de dezembro, expira o prazo para que um acordo comercial definitivo seja assinado entre as partes. Caso contrário, a expectativa é de uma separação caótica, e as filas de caminhões nas fronteiras já é uma realidade. Na Europa, o fim deste ano é muito parecido com o seu começo.
Itália se torna o 1º país a impor quarentena nacional, em 10 de março
A voracidade no novo coronavírus se mostrou de forma particular na Itália, entre fevereiro e março de 2020. O mundo assistiu atônito à crise do sistema funerário da província de Bergamo, que não conseguiu lidar com a quantidade avassaladora de vítimas fatais da COVID-19.
"Uma geração inteira morreu em pouco mais de duas semanas. Nunca vimos nada parecido, e a vontade que dá é de chorar", disse o diretor de uma funerária local, Antonio Ricciardi, na época.
O primeiro-ministro do país tomou uma medida que até então era sem precedentes: anunciar quarentena nacional, fechamento de fronteiras e suspensão de toda atividade comercial não essencial.
A partir dessa data, diversos países adotaram medidas similares, como a Espanha, El Salvador, e Colômbia.
A expectativa era a de uma quarentena de algumas semanas poderia frear a transmissão do vírus, e praticamente erradicá-lo – como, de fato, ocorreu na Nova Zelândia, por exemplo.
Na época, poucos esperavam que, em 22 de dezembro, megalópoles como Londres estariam anunciando a reimposição de quarentenas, sem previsão de retirada.
Cancelamento das Olimpíadas de Tóquio de 2020, 24 de março de 2020
Em 24 de março, o Comitê Olímpico Internacional postergou oficialmente os Jogos Olímpicos de Tóquio, jogando um balde de água fria em milhares de atletas que se prepararam anos para participar das competições.
Na ocasião, o então primeiro-ministro Shinzo Abe prometeu preparar o país para a celebração dos jogos em meados de 2021. Em outubro, seu sucessor, o primeiro-ministro, Yoshihide Suga, repetiu o mantra e prometeu "fazer o que for necessário" para organizar as Olimpíadas em 2021.
Nesta segunda-feira (21), o primeiro-ministro demonstrou sua determinação ao negar que o Japão precisasse declarar estado de emergência, apesar de alta substancial no número de casos de COVID-19 no país.
Além disso, recente pesquisa da agência local Kyodo aponta que menos de 25% dos japoneses são a favor da celebração dos jogos, ocasião na qual a capital deve receber cerca de 11 mil atletas estrangeiros.
Apesar de não estar claro se a nova cepa do coronavírus descoberta no Reino Unido está em circulação no Japão, o cenário volta a ficar nebuloso para a celebração dos jogos olímpicos.
Revisionismo histórico do papel da URSS e da Rússia na 2ª Guerra Mundial, 9 de maio
2020 marcou os 75 anos da vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, durante a qual milhões de pessoas deram suas vidas para derrotar o nazismo.
Uma ocasião que deveria celebrar a força das alianças internacionais contra um inimigo comum, no entanto, foi marcada por campanhas de desinformação e notícias falsas, que negavam o papel da então URSS e da Rússia nesse evento histórico.
"As campanhas para diminuir o papel da Rússia na Segunda Guerra Mundial não vieram como uma surpresa para mim, principalmente no aniversário de 75 anos do Dia da Vitória", disse a doutoranda em Relações Internacionais da Universidade Estatal de Moscou, Victoria Fedosova, à Sputnik Brasil.
Apesar dos esforços, ela acredita que "o fato é que a imensa maioria da população russa, assim como dos países da ex-URSS, se lembra desse ato heroico".
Na Rússia, a tradicional Parada da Vitória, realizada anualmente no dia 9 de maio, foi adiada em função da pandemia. No dia 24 de junho, quando a primeira onda de COVID-19 havia se arrefecido na capital russa, o evento foi celebrado, com ênfase nos desfiles aéreos.
Assassinato do norte-americano George Floyd, 25 de março
Em uma temporada de pandemia e lockdowns, era difícil conceber o que poderia levar milhares pessoas a manifestações de rua de larga escala.
Mas em 25 de março, o policial norte-americano de Minnesota, Derek Chauvin, decidiu testar os limites da comunidade negra norte-americana ao sufocar até a morte um afro-americano chamado George Floyd.
"Eu não consigo respirar", teria dito Floyd, enquanto o policial permaneceu ajoelhado no seu pescoço por mais de nove minutos.
Manifestações espontâneas e organizadas pelo movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) inundaram as ruas dos EUA, solicitando reformas abrangentes no sistema policial norte-americano e justiça social.
Apesar do movimento ter contribuído para colocar o racismo estrutural e a violência policial no topo da agenda de 2020, no fim do ano, um assassinato muito similar ocorreu novamente. Desta vez a vítima era João Alberto Silveira Freitas, o Beto, e a cidade era Porto Alegre, Brasil.
Explosão em Beirute, 4 de agosto
O segundo semestre de 2020 começou com uma explosão. Em 4 de agosto, um depósito que armazenava nitrato de amônio explodiu no porto da capital libanesa, Beirute. O impacto gerou um terremoto de magnitude 3,3, sentido não só no Líbano, mas também em Turquia, Síria, Israel e Chipre.
"Eu sintonizei um canal de televisão libanês [...], mas tudo o que podia ver era uma confusão e um repórter com a voz embargada, descrevendo a destruição ao seu redor", contou o jornalista de origem libanesa, Ahmad El-Khatib, à Sputnik Brasil.
"Mas quando vi um vídeo que mostrava a explosão de longe, e como ela fez os prédios da cidade parecerem tão pequenos, eu comecei a chorar", relatou El-Khatib,
A explosão deixou mais de 200 pessoas mortas e milhares de feridos. Residências localizadas a mais de 10 km do epicentro foram danificadas, forçando famílias inteiras a recomeçar as suas vidas do zero. A situação econômica do Líbano, que já era preocupante, ficou definitivamente devastadora.
"Toda geração no Líbano tem seu trauma. Agora, a minha tem o seu trauma também", resumiu El-Khatib. "Temos anos de reconstrução pela frente, com a esperança de que a próxima geração seja absolvida dessa sina."
Armênia e Azerbaijão iniciam combates por Nagorno-Karabakh, 27 de setembro
Pode parecer estranho que pandemia seja considerada um momento propício para iniciar um conflito militar interestatal por um território contestado. Mas, em um ano como 2020, esse foi exatamente o cálculo feito por alguns líderes políticos e militares.
Após anos de paz armada, Armênia e Azerbaijão retomaram a guerra por uma região considerada azeri, mas que se encontrava sobre o controle da Armênia desde a queda da União Soviética.
De acordo com as autoridades armênias, mais da metade da população de Nagorno-Karabakh foi deslocada em função do conflito, que teria deixado quase três mil vítimas militares na região contestada. Os números exatos ainda são alvo de controvérsias nesse conflito cuja cobertura foi marcada pela guerra informacional.
Mas é inconteste que a convocação de terroristas sírios da região de Idlib para combater na linha de frente de Nagorno-Karabakh foi um dos episódios mais lamentáveis deste conflito.
"A presença de combatentes de grupos armados ilegais em uma zona de conflito é um grande perigo e motivo de profunda preocupação para a Rússia", notou o porta-voz do governo russo, Dmitry Peskov, em 7 de outubro.
Em busca de vantagens no terreno, as partes violavam sistematicamente acordos de cessar-fogo promovido por autoridades internacionais. Em 10 de novembro, os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e do Azerbaijão, Ilham Aliev, e o premiê da Armênia, Nikol Pashinyan, finalmente assinaram um acordo, colocando fim às hostilidades.
Em 12 de dezembro, troca de tiros entre as partes na região de Hadrut gerou tensões entre Armênia e Azerbaijão. A guerra não voltou a estourar, até pela presença de missão de paz robusta na região, mas o episódio nos fez lembrar que a roda da fortuna de 2020 pode sempre voltar a girar.
Assassinato de cientista nuclear iraniano, 27 de novembro
E girou. No dia 27 de novembro, a comunidade internacional recebeu com alarme a morte do cientista nuclear iraniano, Mohsen Fakhrizadeh, assassinado em uma emboscada na região metropolitana de Teerã.
Chefe do setor de inovações do Ministério da Defesa do Irã, Fakhrizadeh era considerado uma figura-chave nos programas nuclear e de mísseis do país.
Autoridades iranianas acreditam que seu assassinato foi resultado de uma operação de agência de inteligência estrangeira, com o intuito de desestabilizar a região.
Assim como em 2 de janeiro, todos aguardavam a resposta iraniana para mais essa provocação, que deixou o Oriente Médio novamente à beira de uma guerra de larga escala.
O Irã optou por não reagir militarmente ao incidente, na esperança de que, em 2021, possa ter um relacionamento diplomático menos truculento com a administração de Joe Biden nos EUA.
Mas, internamente, o estrago foi feito, e grupos conservadores, que exigiam uma resposta mais dura de Teerã, devem ganhar espaço nas eleições iranianas do ano que vem.
Reino Unido anuncia mutação mais transmissível do novo coronavírus, 18 de dezembro
Para completar o ciclo de 2020, o ano termina com uma notícia devastadora vinda de Londres: uma variante mais transmissível do novo coronavírus está em circulação no país, dificultando o combate à pandemia.
A notícia veio como um balde de água fria na comunidade internacional, que começava a dar sinais de otimismo com o início de vacinações em massa na Rússia, nos EUA e no próprio Reino Unido.
Diversas regiões do país, inclusive a capital, Londres, voltaram para o regime de lockdown. As autoridades pedem que o Natal deste ano não seja comemorado em família.
Após 12 meses de luta, o mundo parece ter voltado para janeiro de 2020.