Não foi só boa parte dos 45 milhões de argentinos que acompanharam a votação que legitimou o aborto no país do Papa Francisco. O Brasil, maior nação católica do mundo, e seus grupos a favor e contra o aborto estavam atentos ao que se passou em Buenos Aires.
E eles vão mexer as peças desse tabuleiro que sempre passa por Brasília. Vão mexer e falar.
"A aprovação foi essencial porque o número de mulheres que morrem pela criminalização do aborto é absurdo", disse a deputada estadual Renata Souza (PSOL) à Sputnik Brasil. "São pessoas que recorrem ao aborto ilegal sem condições básicas. A Argentina apresenta a possibilidade de o tema ser colocado como saúde pública. É um recado para a América Latina e o Brasil deve se espelhar nela".
Não é o que pensa Jaime Ferreira Lopes, fundador e presidente de honra do grupo Brasil Sem Aborto, que também foi entrevistado pela Sputnik Brasil.
"Da nossa parte, achamos a decisão lamentável. O placar apertado mostra como a questão é profunda no país. Trata-se não apenas de descriminalizar o aborto, mas legalizar tudo. É uma lei permissiva que, em alguns casos, pode tornar o aborto legal até o sétimo mês", argumentou Lopes.
O debate é enorme e tem causas políticas, morais, econômicas e, claro, religiosas. Antes da votação no Senado argentino na noite de terça-feira (29), o papa Francisco publicou no Twitter:
O Filho de Deus nasceu descartado para nos dizer que toda pessoa descartada é um filho de Deus. Veio ao mundo como uma criança vem ao mundo, débil e frágil, para que possamos acolher nossas fragilidades com ternura.
Não teve jeito. Na madrugada desta quarta-feira (30), o Senado aprovou o texto. A interrupção voluntária da gravidez (IVE) até a 14ª semana obteve 38 votos a favor, 29 votos contrários e uma abstenção, como informou o jornal Clarín. Quatro senadores estiveram ausentes.
Há duas semanas, a Câmara dos Deputados já tinha aprovado o projeto por 131 a 117 com seis abstenções.
Votações apertadas, muita polêmica, mas o fato é que agora a Argentina é o quarto país da América do Sul onde o aborto é legal. Os outros três são Uruguai, Guiana e Guiana Francesa.
A nova lei argentina
Desde 1921, quando foi sancionado o Código Penal do país, o aborto era permitido na Argentina apenas em caso de estupro ou de perigo para a vida da mulher.
A nova lei obriga os estabelecimentos de saúde a realizar a interrupção da gravidez em até dez dias corridos após o requerimento. Qualquer conduta que atrase a realização do procedimento é passível de três meses a um ano de prisão.
A partir da 15ª semana de gestação, o aborto continuará sendo criminalizado, salvo em caso de estupro ou perigo para "a vida ou saúde integral da mulher".
O termo "integral", no entanto, deverá ser retirado do texto final quando a lei for promulgada pelo Executivo, afirmou o senadora Norma Durango.
A lei e a realidade brasileiras
No Brasil, o aborto só é legal em três casos: gravidez decorrente de um estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto, ou seja, defeito congênito no cérebro.
A lei 12.845 de 2013 regulamenta o atendimento obrigatório e integral à pessoas em situação de violência sexual e concede todos os meios à gestante para interromper a gravidez em caso de estupro, sem que seja necessário que a mulher apresente boletim de ocorrência, nem faça exame de corpo de delito.
Segundo o DataSUS, o processamento de dados do Sistema Único de Saúde, o número de procedimentos realizados pelo órgão devido a abortos malsucedidos – sejam eles provocados ou espontâneos – foi 79 vezes maior do que o de interrupções de gravidez previstas em lei durante o primeiro semestre de 2020.
Nos seis primeiros meses do ano, o SUS realizou 1.024 abortos legais em todo o Brasil.
No mesmo período, foram 80.948 curetagens e aspirações, processos necessários para limpeza do útero após um aborto incompleto e que são mais frequentes quando a interrupção da gravidez é provocada.
O sistema brasileiro gasta 30 vezes mais com procedimentos pós-abortos incompletos do que com abortos legais. No primeiro caso, são gastos R$ 14,29 milhões, contra R$ 454 mil gastos com a interrupção prevista em lei.
Próximos passos
O novo fato na Argentina tem eco no Brasil em termos práticos. Os grupos pró e contra vão se mexer rumo a Brasília, mais exatamente ao Congresso. Qualquer mudança na Constituição precisa de 3/5 dos votos dos parlamentares. Em uma circunstância política de um governo conservador, isso pesa na balança.
"Sabemos do lobby religioso. Assim, a possibilidade de mudança, dentro do Parlamento, é reduzida. Mas é preciso uma mobilização para pressionar o Congresso. E fazer um debate amparado na ciência, nos direitos da mulheres, e não em uma lógica religiosa e fundamentalista", defendeu Renata Souza.
Para movimentos contrários ao aborto, como a Comunidade Católica Porta Fidei ou o Brasil Sem Aborto (BSA), a política do atual governo federal serve como uma apólice de seguro.
Em outubro, Jair Bolsonaro assinou decreto que visava garantir a vida "desde a concepção" e os "direitos do nascituro". A medida é vista por defensores de direitos reprodutivos como mais uma ofensiva do presidente contra os casos previstos em lei para a interrupção de gravidez. O Artigo Cinco da Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031 traz a seguinte orientação:
"Promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes".
O idealizador e fundador da BSA está atento ao poder que o Legislativo tem para mudar ou não o status do aborto no país. E atento também a algo que foge da alçada dos dois lados da questão.
"Temos frentes parlamentares no Congresso. Mas o que nos preocupa é o Judiciário, ou seja, que a questão do aborto siga pela via judicial. Nosso temor é que possa seguir pelo ativismo judicial - o STF, por exemplo - e assim a luta fica mais difícil", disse Jaime Ferreira Lopes.
O caso da menina de 10 anos
Para ele, é importante que não se crie no Brasil mais excludentes de punibilidade - as exceções previstas na lei do aborto - e que não se caia em reações emocionais no país como nos casos de estupro. Lembrando que "aborto no Brasil é crime", Lopes entende que até em casos de estupro é preciso analisar melhor a situação.
Como a da menina de dez anos, capixaba, que era violentada pelo tio, engravidou e teve a gravidez interrompida na 22ª semana em agosto.
"Ali houve equívoco de avaliação clínica. O tempo de gestação poderia ser maior e no devido momento fazer uma cesariana. Entendemos também que a menina deveria ter tido apoio psicológico do Estado. E se não houvesse alguém da família que pudesse ficar com a criança, alguém poderia adotá-la. Teria sido um caminho mais fácil", disse ele.
Jaime também critica o governo ainda no tema do estupro. Diz que o Estado é "conivente" com os abortos clandestinos "que têm números inflados como estratégia mentirosa para ampliar a adesão popular" e que essa clandestinidade é facilmente identificável.
"A Polícia Federal poderia fazer isso, checar estes locais. O fato é que este número, que é uma falácia, e esta situação não são justificativas para legalizar o aborto", defendeu Lopes.
Números do aborto
No Brasil, baseado em dados do DataSUS de 2019, para cada 100 internações, 99 eram por abortos espontâneos e de tipos indeterminados e apenas um era por aborto previsto em lei. A cada dez mulheres internadas, seis eram pretas ou pardas e quatro, brancas.
Em 2020, o SUS registrou 642 internações por aborto de moças entre 10 e 14 anos e, para efeito de comparação, 714 por asma em crianças da mesma faixa etária.
No período entre 2010 e 2019, o SUS notou que a cada 20 crianças internadas para aborto, oito eram da Região Nordeste, a mais pobre do país. No mesmo período, para cada menina branca que se submetia ao procedimento cirúrgico, havia três negras.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o número de abortos gira entre 40 e 50 milhões por ano. Isso significa, no mínimo, 109 mil casos por dia.