Ontem (20), no mesmo dia em que tomou posse, o governo de Joe Biden fez um gesto memorável: os EUA estão de volta à OMS, e devem integrar a aliança mundial de vacinas contra a COVID-19, a Covax. O anúncio era esperado. Ao longo da campanha presidencial norte-americana em 2020, Biden enfatizou em diversas ocasiões a importância do multilateralismo na organização política global.
Donald Trump, por outro lado, era um fervoroso crítico dessas organizações, sentimento compartilhado pelo presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Porém, a saída de Trump (e em especial a chegada de Joe Biden), representou uma mudança no tabuleiro geopolítico. Prova disso foi que, na manhã desta quinta-feira (21), Anthony Fauci, principal responsável pelo combate à COVID-19 nos EUA, participou por vídeo pela primeira vez do Comitê Executivo da OMS.
Fauci declarou que a entidade é "líder" na luta global contra a pandemia, e chamou Tedros Ghebreyeus de "querido amigo". Ele ainda anunciou que quer o fortalecimento e a reforma da agência, garantindo que vai cumprir suas obrigações financeiras com a OMS. Diante deste cenário, a Sputnik Brasil conversou com o professor Williams Gonçalves, especialista em relações internacionais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), para compreender de que modo o Brasil pode ser impactado por essas primeiras medidas de Biden como presidente dos EUA.
"Em relação às primeiras medidas tomadas pelo presidente Joe Biden, é necessário dizer o seguinte: já faz muito tempo, desde a Segunda Guerra Mundial, que as elites norte-americanas formaram um consenso a respeito da posição dos Estados Unidos no sistema internacional de poder. Há discordâncias entre os democratas e os republicanos sobre a melhor maneira de agir. A discordância é de método, mas não de objetivo, e o objetivo sempre foi colocar os EUA como potência hegemônica, e trabalhar para a permanência dessa condição", afirmou.
"A situação em que nós nos encontramos atualmente é essa: um país marginalizado nos principais foros multilaterais. Como enfrentar isso é muito difícil dizer. Seria necessária uma mudança radical, como, por exemplo, trocar o chanceler Ernesto Araújo. Além disso, é necessário reelaborar uma política externa, e pedir desculpas pelo o que foi feito nos últimos anos. É necessário admitir a irracionalidade de nossas iniciativas e iniciar, na prática, um novo governo", sustenta Williams Gonçalves.
Neste contexto, é importante relembrarmos que o Itamaraty, apesar de não ter saído da OMS, adotou ao longo dos últimos meses um tom de recusa em reconhecer o papel central da agência em um esforço global para lidar com o vírus. Além disso, o Itamaraty passou a evitar o termo "multilateralismo", já que o chanceler brasileiro acredita que a palavra pertence a uma ideologia. O argumento central é de que entidades "globalistas" seriam uma ameaça para a soberania nacional e que, eventualmente, fariam parte de um avanço infiltrado de comunistas.
Para Williams Gonçalves, "Bolsonaro já está muito desgastado em virtude de todas as trapalhadas que cercam o combate à pandemia no Brasil, e pedir perdão aos EUA, China e Índia, isso não é cogitado pelo presidente. É muito difícil dizer o que ele pretende e pode fazer". O especialista acredita que o papel do Brasil, com saída de Donald Trump, foi relegado dentro de um contexto geopolítico, e por esta razão, mudanças precisam ser feitas, ou o país pode ficar isolado politicamente.
"O problema é a política externa desenvolvida pelo presidente Jair Bolsonaro e seu chanceler Ernesto Araújo. Na verdade, rigorosamente falando, stricto sensu, não se trata de uma política externa. Se entendemos política como fixação de objetivos, objetivos principais, secundários, definição de aliados prioritários, aliados secundários, não existe nada disso. Se consideramos a política, segundo esses critérios, não há nada disso. O chanceler brasileiro faz menção a ideias muito vagas, e algumas indecifráveis, como seu antiglobalismo, coisas que não tem relação com o mundo real. Em função dessas ideias extravagantes, exóticas, que foram levadas a condição de política externa do país, o Brasil se afastou de todos os países.
"O Brasil trabalhou no sentido de desfazer a Unasul, trabalhou para enfraquecer ao máximo o Mercosul, e vale dizer, inclusive, que essas iniciativas são inconstitucionais. A Constituição brasileira prevê a integração regional. Então, o Brasil se indispôs com seus vizinhos da Unasul, se afastou deles, enfraqueceu o Mercosul, se afastou do principal parceiro do Mercosul, a Argentina, e trabalhou para enfraquecer o BRICS, que hoje, excetuando-se o Brasil, está na vanguarda da pesquisa para o aperfeiçoamento da vacina contra a COVID-19", enfatizou o especialista.
Em sua explicação sobre a importância da volta dos EUA à OMS, e de que forma isso pode gerar consequências ao Brasil, o professor sustenta que os grandes adversários dos EUA continuam sendo a China e Rússia, cada uma com suas próprias particularidades.
"O grande adversário dos Estados Unidos continuará sendo a China, em primeiro lugar, e a Rússia, em segundo. Embora essas duas potências tenham características diferentes e sejam vistas diferentes pelos dirigentes norte-americanos. A china é uma competidora econômica, ao passo que em relação aos russos, os norte-americanos tenham uma visão diferente. Há o elemento geopolítico militar, que tem mais peso. Há preocupação em relação a Rússia sobre a política russa para Eurásia, a política russa do petróleo. Ao passo que a China a preocupação maior é no plano econômico, uma vez que a China não fez até hoje nenhum movimento militar significativo. A exceção óbvia é o contencioso do mar do sul da China. Mas isso não significa ameaça direta aos EUA. Portanto, a percepção a respeito do que é ameaça para os EUA continua a mesma".
Para ele, a visão dos EUA como potência hegemônica incide em uma contenda ideológica em busca do protagonismo disputado por esses países.
"Ora, a novidade que Donald Trump trouxe, foi que ele rompeu esse consenso. A política anunciada por Trump de 'America First' não era uma política de manutenção do país como potência hegemônica. Era uma proposta nacionalista e isolacionista. Uma proposta em relação aos seus aliados, egoísta. E os declarados inimigos de Trump eram inimigos, no seu entendimento, comerciais, econômico-comerciais. Trump nunca teve a preocupação de iniciar guerras. Trump não mobilizou o aparato do complexo industrial-militar. Ora, isso o colocou tanto contra o Partido Democrata, como contra parte de seu Partido Republicano. De modo que a volta dos democratas à presidência significa a recomposição do consenso nacional a respeito de qual deve ser o lugar dos Estados Unidos no mundo, que é aquele de potência hegemônica", afirmou Williams Gonçalves.