Há muita literatura sobre Carnaval no Rio de Janeiro. Sociólogos, historiadores e antropólogos por anos se dedicam ao estudo deste tema. Há, todavia, um consenso não formal sobre a festa profana dos cariocas: existem dois carnavais no Rio, o primeiro, o mais conhecido, envolve o espetáculo na Sapucaí; e o outro, mais humilde, envolve as centenas de blocos que desfilam pela cidade, assim como escolas de samba menores.
Em um deles, há dinheiro e financiamento público vigoroso. No outro, a falta de recursos se tornou via de regra nos últimos anos, e com a chegada da pandemia da COVID-19 em 2020, o cenário é caos e desordem. Para compreender a atual situação dos principais atores da maior festa urbana da cidade, a Sputnik Brasil conversou com especialistas e protagonistas de diversas escolas de samba.
Neste contexto, discutimos a decisão do prefeito do Rio, Eduardo Paes, que na quinta-feira (21) cancelou o Carnaval fora de época, programado para julho, assim como as repercussões econômicas desta medida. Vale lembrar que, no ano passado, a festa injetou cerca de R$ 8 bilhões no turismo do país, sendo R$ 2,6 bilhões apenas no Rio de Janeiro.
Para a autora do livro "Serra, Serrinha, Serrano: o Império do Samba", Rachel Valença, "fora a questão cultural, existe a [questão] econômica do Carnaval, e ele representa muito para a cidade. As escolas empregam muitas pessoas, e além disso, a cidade recebe um número enorme de turistas, atraídos pelo desfile e pelos blocos". Para ela, o "Carnaval não tem a atenção que merece. O poder público sempre foi muito cego com relação à importância econômica da festa. A Bahia, por exemplo, investe nisso, mas o RJ parece que tem vergonha. É preciso respeitar a nossa cultura"
"As pessoas que trabalham indiretamente foram muito afetados pela falta de movimento. Eu não acredito que o Carnaval de julho poderia ser tão bem sucedido quanto em fevereiro. O poder público tem que sanar de alguma forma esse problema. O poder público fecha os olhos para isso, mas até agora não há contrapartida, é uma coisa muito cruel, é o modo como tratamos o nosso Carnaval", sustenta a pesquisadora.
Para Francisco Horta, presidente da Unidos da Tijuca, "a decisão de programar a festa para julho foi vista com bons olhos, pois "ajudaria as escolas, trabalhadores e operários". Porém, ele ressaltou que um desfile na Sapucaí não se faz em dois dias, e sim em um ano. "É preciso fazer ensaios, fazer aglomeração. Mesmo que a vacina seja liberada, e sendo otimista, tendo uma boa vacinação em junho, como fazer um carnaval neste tempo?".
A posição de Francisco Horta é partilhada pela maioria das grandes escolas. Ainda ontem (21), por uma nota oficial, a LIESA manifestou seu apoio e compreensão à decisão de Paes, "tendo em vista o aumento geral dos casos de COVID-19 e o atual momento". A São Clemente, outra escola de samba que falou com exclusividade à Sputnik Brasil, informou que "a agremiação está parada no momento, impossibilitada de fazer qualquer atividade em função da COVID-19. O que temos até agora é um enredo, e só. Não fizemos mais nada".
A justificativa para a ausência de planos para o Carnaval, para ambas agremiações ouvidas por esta reportagem, é que a questão financeira está apertada. Francisco Horta explicou que a Unidos da Tijuca fazia shows, eventos, festas, mas "nós não estamos fazendo nada. A Tijuca deve ao banco, e estamos mantendo assim agora. Não sei como será daqui para frente. É preciso a Liga bolar uma solução, um recurso antecipado. Os funcionários estão em um desespero muito grande. Eu até consegui doar alimentos, mas isso não é o bastante".
"Na última reunião que fizemos, tivemos esperança de pedir o adiantamento das verbas. Havia a esperança de fazer um Carnaval em julho, mas era preciso decidir isso no mais tardar em 30 de janeiro, para ter um espetáculo de qualidade. Agora é se reunir com os coirmãos e a Liga para ver o que é possível. Precisamos urgentemente de recursos", disse Francisco Horta.
Já a São Clemente, após enfatizar que a ausência de atividades ao longo do ano nas quadras impossibilita as escolas financeiramente, disse que o Carnaval estava, mesmo antes do cancelamento, totalmente parado. A agremiação relembrou que neste ano completará 60 anos, e que havia um calendário de festas para celebrar a ocasião, mas nem isso foi possível ser feito. Para eles, a posição a ser defendida no momento é a saúde da população.
Em verdade, este sentimento foi partilhado por praticamente todas as escolas. O presidente da Vila Isabel, Fernando Fernandes, afirmou que "a Vila respeita e acompanha os protocolos de saúde. A gente não pode esquecer disso. A gente tem que ouvir as autoridades de saúde. Infelizmente é isso. A doença tá ai". O Salgueiro, por sua vez, além de compreender o cancelamento dos desfiles de 2021, também suspendeu a realização das eliminatórias para a escolha do samba enredo da escola. Em nota, a agremiação também lembrou dos trabalhadores do carnaval.
Os trabalhadores do Carnaval, e a festa em Intendente Magalhães
Enquanto as grandes escolas lamentam e se reúnem para debater formas de repor as perdas do cancelamento do Carnaval, um outro Carnaval carioca agoniza, o das pequenas escolas, dos blocos, de parte considerável da população que corre para avenida Intendente Magalhães, em Madureira, fugindo dos altos valores cobrados na Sapucaí.
"A nossa escola não tem funcionários, e sim colaboradores. Na verdade, vivemos dos poucos recursos públicos que a prefeitura nos oferta. Mas, como neste ano faltou dinheiro, o Carnaval de 2021, para nós, sequer pode ser cogitado", disse.
"A atual situação é que está difícil para sobreviver. Temos grandes dificuldades de estrutura nas quadras, instrumentos quebrados e muitos problemas. A lei Adir Blanc nos ajudou um pouco, deu para respirar. Mas a situação é crítica demais. As pessoas que trabalham com Carnaval em Intendente Magalhães estão sem receber. Somos referência em nossos bairros, fazemos parte da história do Carnaval, mas seguimos esquecidos", afirma o presidente.
"O Carnaval de 2022 é o que nos resta. Mas será tudo muito prejudicado. As escolas precisam se reinventar, porque não há movimentação nas quadras atualmente, as festas, as feijoadas, não há nada. Não temos nada. É preciso manter acessa a chama da escola, ou corremos o risco de chegar em 2022 sem força, sem um desfile para fazer na avenida. São 400 dias sem atividades, quadras ociosas e sem funcionar. É preciso que poder público nos ajude. O Carnaval, longe do marketing, não é menos importante do que os outros. Fazemos parte da história da cidade, e estamos abandonados", denunciou.
Nesta quinta-feira, Clayton Ferreira, presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Brasil (Liesb), que representa as escolas que desfilam em Intendente Magalhães, disse que para essas agremiações que são pequenas e dispõem de poucos recursos para organizar seus desfiles, foi um alívio a notícia de que não vai haver carnaval em julho. Ele disse que a Liesb já está discutindo com a Riotur formas de ajudar quem vive da folia o ano todo. A primeira reunião foi nesta quinta-feira (21) e um segundo encontro estaria marcado para a semana que vem. Porém, até agora, não há nada concreto ofertado à mesa de negociações.