Religiosos pressionam presidente português a enviar lei da eutanásia a Tribunal Constitucional

A lei da despenalização da eutanásia foi aprovada pelo Parlamento português na última sexta-feira (29). Porém, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, católico e pessoalmente contra a legislação, ainda pode vetá-la ou enviá-la ao Tribunal Constitucional. A terceira opção é promulgá-la.
Sputnik

O texto do projeto de lei que descriminaliza a morte medicamente assistida foi aprovado com 136 deputados a favor, 78 votos contra e quatro abstenções. Nesta semana, o diploma segue para a análise de Rebelo de Sousa. Se decidir encaminhá-lo ao Tribunal Constitucional (TC), pedindo a fiscalização preventiva da constitucionalidade, o presidente terá que fazê-lo em um prazo de oito dias. Caso opte por vetá-la, terá ainda mais 12 dias.

As alternativas não são simples. Por um lado, Rebelo de Sousa tem a consciência de que o presidente do TC, Manuel da Costa Andrade, é um penalista que seria contrário à interpretação de que a lei da eutanásia seria inconstitucional por desrespeitar o artigo que diz que a "vida humana é inviolável". Por outro, seria uma forma de "lavar as mãos" e se isentar com uma decisão intermediária, que transfere a responsabilidade.

Se optar pelo veto político da lei, o diploma voltaria à Assembleia da República (AR), onde já foi aprovado com maioria, tendo que ser ratificado por dois terços dos deputados. Nesse caso, a promulgação por Rebelo de Sousa passaria a ser obrigatória. Em ambas as hipóteses, a derrota da posição pessoal do presidente é possível e provável. 

Religiosos pressionam presidente português a enviar lei da eutanásia a Tribunal Constitucional

No entanto, se escolher a terceira opção e promulgar diretamente, o custo político pode afetar a sua grande popularidade em um país majoritariamente cristão. Logo após a aprovação pela AR, o Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) divulgou um comunicado manifestando "tristeza e indignação diante da aprovação parlamentar da lei que autoriza a eutanásia e o suicídio assistido".

"Essa tristeza e indignação são acrescidas pelo fato de se legalizar uma forma de morte provocada no momento do maior agravamento de uma pandemia mortífera, em que todos queremos empenhar-nos em salvar o maior número de vidas, para tal aceitando restrições da liberdade e sacrifícios econômicos sem paralelo", lê-se em um trecho do comunicado dos bispos católicos.

A Federação Portuguesa Pela Vida (FPV) foi outra entidade que repudiou a aprovação da lei pela AR. Em entrevista à Sputnik Brasil, a advogada Isilda Pegado, presidente da FPV, afirma que há uma grande movimentação popular a pedir ao presidente da República que envie o diploma ao Tribunal Constitucional. No entender da instituição, o Parlamento aprovou uma lei que é contra a Constituição.

"Desde sexta, verificamos que cresceu em todo país essa contestação popular, o reconhecimento de que é uma afronta à situação trágica com a pandemia e também àqueles que são mais pobres, porque os cuidados médicos são caros, e aquilo que se percebe é que é mais fácil matar do que tratar e cuidar. Portanto, a FPV entende que essa medida é economicista e que as principais vítimas serão os pobres", avalia Isilda. 

Associação de Juristas Católicos divulga carta aberta a Rebelo de Sousa

Questionada se o envio do diploma ao Tribunal Constitucional não poderia acabar legitimando a lei, uma vez que o presidente do TC teria o entendimento de que a despenalização da morte medicamente assistida não é inconstitucional, a advogada argumenta que o tribunal também é composto por outros 12 juízes e que caberia a Costa de Andrade o voto de Minerva apenas em caso de empate.

"A única forma de travar a lei é a verificação da constitucionalidade. O TC não é o presidente, mas um conjunto de juízes cujos votos e pareceres têm tanto valor quanto o dele. A leitura que faço das declarações não vão nesse sentido. Perante a lei, o presidente tem que fazer uma análise detalhada da proteção que a vida humana está a ter ou não, ou se viola a Constituição: é preciso entender se a Constituição admite que é função do Estado matar pessoas e pôr fim à vida de seres humanos", pondera.

Nesta segunda (1º), a Associação dos Juristas Católicos também divulgou uma carta aberta a Marcelo Rebelo de Sousa, em que defende a "inconstitucionalidade da legalização da eutanásia e do suicídio assistido". Segundo a missiva, a morte medicamente assistida desrespeitaria o princípio e a garantia da inviolabilidade da vida humana, assegurados no artigo 24, nº 1, da Constituição, além de violar os princípios da dignidade humana (artigo 1º) e da igualdade (artigo 13º).

"Atrevemo-nos a solicitar a vossa excelência que requeira a fiscalização preventiva da constitucionalidade da legalização da eutanásia e do suicídio assistido ao TC. Consideramos que vale a pena envidar, até ao fim, todos os esforços no sentido de obstaculizar à legalização da morte provocada (através da eutanásia e do suicídio assistido) no nosso país e continuamos a confiar na integridade e sensatez de vossa excelência", lê-se em um trecho da carta.
Religiosos pressionam presidente português a enviar lei da eutanásia a Tribunal Constitucional

No dia anterior, a Aliança Evangélica Portuguesa (AEP) já havia se posicionado contra a descriminalização da eutanásia. Em um comunicado publicado em seu site, a entidade alegou que, nas eleições legislativas, poucos foram os partidos que se apresentaram com a proposta de legalização da eutanásia.

Na votação da última sexta (29), a maioria dos deputados do PS, Bloco de Esquerda, PAN e PEV votaram a favor, enquanto o PCP, o CDS, 56 parlamentares do PSD, além de André Ventura, do Chega, foram contra. Segundo a AEP, muitos cristãos que votaram nos primeiros partidos sentem-se enganados.

"Como Aliança, convidamos os cristãos a orarem para que o Senhor Presidente da República, sensível a esta matéria, tudo faça para que uma lei com tão reduzida aceitação em Portugal não seja colocada em prática, assim como para que o Tribunal Constitucional defenda o princípio da inviolabilidade da vida humana, ao invés de defender a frágil autonomia de uma pessoa em sofrimento, tão permeável ao aproveitamento de interesses externos", lê-se no comunicado.  

Além da AEP e da Igreja Católica, outras sete comunidades religiosas que compõem o Grupo de Trabalho Inter-Religioso|Religiões-Saúde (GTIR)  criticaram a legalização da eutanásia, em outro comunicado divulgado no sábado (30). O documento também é assinado por representantes da Comunidade Hindu Portuguesa, Comunidade Islâmica de Lisboa, Comunidade Israelita de Lisboa, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Mórmons), Patriarcado Ecumênico de Constantinopla (Igreja Ortodoxa), União Budista Portuguesa e União Portuguesa dos Adventistas do Sétimo Dia.

Deputada socialista diz que maioria da sociedade é a favor da lei

Em entrevista organizada pela Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal (AIEP), a deputada socialista Isabel Moreira, responsável pela elaboração do texto final da lei da eutanásia, afirmou à Sputnik Brasil que as entidades religiosas já tiveram tempo e espaço suficientes para se manifestar em audiências públicas anteriores à votação final. A parlamentar consolidou o texto de projetos de lei de cinco partidos referentes ao tema: BE, PAN, PS, PEV e IL. 

"Esse projeto foi alvo de um amplo debate nacional, quer na comunicação social, na academia, quer no Parlamento. Houve um grande trabalho, muitas audições. Todas as entidades que manifestaram vontade de ser ouvidas tiveram a oportunidade. Juristas católicos foram ouvidos, é um direito que a Igreja Católica tem de fazer a sua campanha contra esta lei", relativiza Isabel Moreira.
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A deputada do PS, contudo, pondera que o pacote legislativo remete a 2010, o projeto foi rejeitado na legislatura anterior e reapresentado na atual. Segundo ela, a proposta de um referendo para votar a matéria também foi negada pelo Parlamento devido à complexidade do tema. A parlamentar ressalta que as discussões foram pausadas por causa da pandemia, mas retomadas em um grupo de trabalho, com várias alterações e votações ratificadas nas comissões especializadas. 

Na redação final, ficou definida como "eutanásia não punível a antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva, de gravidade extrema, de acordo com o consenso científico, ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde". Isabel Moreira diz que estudos de opinião demonstram que a grande maioria da sociedade portuguesa é favorável.

"Uma das coisas que se dizia é que a sociedade portuguesa é muito conservadora e que haveria um grande tumulto social. Pelo contrário, há uma grande pacificação social. É um pouco mito a ideia de que os portugueses são tão conservadores e reacionários. São muito livres, se calhar dizem-se católicos como postura cultural, mas sabem distinguir aquilo que é sua pertença a uma religião daquilo que importa do ponto de vista político por uma determinada ação através da lei", compara.

Questionada pela Sputnik Brasil se acredita que Rebelo de Sousa promulgue a lei mesmo sendo católico e pessoalmente contra a despenalização da eutanásia ou acredita que ele possa enviá-la ao Tribunal Constitucional, ela admite não saber.

"Não faço ideia. Temos que aceitar todas as possibilidades que a Constituição confere ao presidente. Se ele vetar politicamente, compete a nós decidir se ultrapassamos esse veto. Se enviar para o Tribunal, vamos aguardar com todo respeito", conclui.
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