O novo cronograma da COVAX Facility para a distribuição mundial de vacinas, divulgado na quarta-feira (3), prevê que o Brasil receba apenas 10,6 milhões de doses do imunizante da Oxford/AstraZeneca. A quantidade é menor que a de cinco países emergentes: Bangladesh (12,79 milhões), Indonésia (13,71 milhões), Nigéria (16 milhões), Paquistão (17,16 milhões) e Índia (97,16 milhões).
O acordo do Brasil com o consórcio internacional é de 42,5 milhões de doses até o fim de 2021. Porém, por enquanto, menos de um quarto desse total está reservado ao país: são exatamente 10.672.800.
Quando aderiu à aliança, em setembro de 2020, o Brasil optou por contratar uma quantidade de vacinas que beneficiaria somente 10% da população, proporção mínima exigida pela inciativa.
A população brasileira é de mais de 212 milhões de habitantes, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mas vale lembrar que a vacina da Oxford requer a aplicação de duas doses por pessoa para garantir a imunização.
Para o professor Flávio da Fonseca, do departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o governo brasileiro deu pouca importância para a iniciativa promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e, por isso, o país ficou com uma cota menor.
"O que acontece é que o Brasil incialmente não se juntou à iniciativa COVAX. Ele acabou sendo pressionado e se juntou tardiamente, exatamente porque o governo brasileiro não deu importância para essa iniciativa, optando pelo mínimo possível de solicitações de vacina e quase desdenhando da iniciativa", afirmou o professor, que é integrante do Comitê Permanente de Enfrentamento ao Novo Coronavírus, da UFMG.
Presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV), Fonseca avalia que não houve um erro de cálculo, e sim que o governo "deliberadamente" não considerou valorizar a inciativa. O pesquisador diz que o Brasil deveria ter solicitado um número de doses mais condizente com a realidade nacional para garantir a queda da curva de contágio da COVID-19.
"Estamos hoje com um número que é um fiasco. Precisamos de um quantitativo muito maior para atingir a tão sonhada imunidade coletiva", criticou o professor.
Para atingir a imunidade coletiva, a OMS já informou que um país precisa ter de 60% a 70% da população vacinada.
"Um equívoco total. O governo brasileiro foi extremamente incompetente na questão das negociações vacinais, desdenhando da vacina, da doença e dos países fabricantes. Os outros países da iniciativa estão com mais doses porque solicitaram mais. Então, a responsabilidade é total do governo brasileiro", afirmou.
Adiamento de doses
Outro ponto negativo para o Brasil no anúncio feito pelo consórcio na quarta-feira (3) é que uma parte do lote de 10,6 milhões de doses da Oxford/AstraZeneca foi adiada para o segundo semestre de 2021.
A COVAX indicou a chegada de 1,6 milhão de doses no primeiro trimestre e de mais seis milhões nos três meses seguintes, entre abril e junho. As outras três milhões de doses restantes da cota brasileira deverão desembarcar só depois do meio do ano.
No último sábado (30), o Ministério da Saúde, comandado por Eduardo Pazuello, anunciou que esperava receber entre dez e 14 milhões de doses do imunizante nesta primeira leva, mas não informou os prazos.
Até o momento, o país possui menos de 3 milhões de pessoas vacinadas.
O médico sanitarista Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), pondera que há um desequilíbrio mundial entre a oferta e a demanda de vacinas. O especialista ressalta que o atraso na distribuição de doses está ocorrendo em escala global.
"Temos visto vários países reclamando que não estão recebendo doses já contratadas e pagas. Então, é natural que, havendo esse desequilíbrio geral na oferta de vacinas no mundo, haja essa frustração", diz Guimarães.
Diplomacia brasileira
Contudo, o professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ (Nubea) lembra que, em 2020, o Brasil rejeitou uma proposta de Índia e a África do Sul na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Na ocasião, os países emergentes desejavam a suspensão de patentes e outros instrumentos de propriedade intelectual vinculados ao combate à pandemia de COVID-19, mas o governo brasileiro ficou ao lado nas nações desenvolvidas.
"O Brasil apoiou a posição dos Estados Unidos, do Canadá e da União Europeia. Isso deixou o Brasil em uma posição de fragilidade diplomática muito grande", disse o vice-presidente da Abrasco.
Para Guimarães, em um momento de escassez de imunizantes, a diplomacia é a ferramenta mais importante para se colocar melhor na "fila" por vacinas.
"Fila haverá. Mas você pode se colocar no final ou em uma posição melhor. A atuação desastrosa do presidente da República [Jair Bolsonaro] e do ministro das Relações Exteriores [Ernesto Araújo] deixou o Brasil muito para o fim da fila", avaliou.