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Coleção de livros vendida em Portugal retrata Rio de Janeiro como selva de bandidos (FOTOS)

Uma selva de bandidos. É assim que o Rio de Janeiro é retratado em uma coleção de histórias em quadrinhos vendida em Portugal. Em todas as capas dos quatro volumes aparecem pessoas armadas. Na que chama mais atenção, uma passista de escola de samba é abraçada por um homem com uma arma na cintura. 
Sputnik

Cada exemplar dos livros de capa dura é vendido por € 10,90 (R$ 70,30). Na apresentação da versão portuguesa da obra francesa "Rio", a palavra selva ou variantes da mesma família lexical são usadas três vezes. "Os dois protagonistas, Rúben e a sua irmã mais nova Nina, nasceram ali, nessa selva suburbana onde ninguém consegue dizer se os maiores perigos e ameaças vêm dos traficantes ou da polícia militar corrupta", lê-se em um trecho.

Inédita até então em língua portuguesa, a obra do desenhista francês Corentin Rouge foi lançada pela editora ASA em parceria com o jornal Público como "uma crônica realista e polifacetada do Brasil contemporâneo". No primeiro volume, "Deus para todos", Alma, mãe dos protagonistas, é "selvaticamente assassinada" por Jonas, um policial corrupto, após pressioná-lo sobre o tráfico de drogas na favela Beija-Flor, que, apesar de levar o nome da escola de samba de Nilópolis, na história em quadrinhos (HQ), é vizinha da Rocinha.

Em entrevista à Sputnik Brasil, Corentin Rouge, que nunca morou no Rio, mas esteve na cidade por mais de cinco vezes, diz que visitou a Rocinha e outra comunidade em Niterói, mas admite que não teve contato com homens armados e se inspirou em cenas de filmes como "Cidade de Deus" e "Tropa de elite". (Leia íntegra da entrevista abaixo)

"Não tive nenhum contato com traficantes de drogas, não me arrisquei. Afinal, visitei muito pouco a favela. Para desenhar a favela, tirei algumas fotos na hora, mas, com os álbuns de fotos, os filmes e tudo que existe na Internet, não falta documentação das favelas!", exclama Corentin Rouge, que também assina o argumento, junto com Louise Garcia. 

A trama combina elementos ficcionais, que pegam carona no favela movie, com episódios de violência que marcaram a Cidade Maravilhosa. Sobreviventes da Chacina da Candelária, Rúben e Nina são adotados pelo casal White, dois americanos ricos e benevolentes que têm influência no governo fluminense, depois que a mãe dos protagonistas é assassinada. 

Arrastão na praia de Ipanema e sequestro aos pés do Pão de Açúcar

No segundo volume, "Os olhos da favela", contudo, Nina é sequestrada por um bando de traficantes a 100 metros do Pão de Açúcar, em uma cena pouco provável em um dos principais cartões-postais cariocas, que é também uma área militar. No mesmo dia, os irmãos já haviam presenciado um arrastão na praia de Ipanema, e Rúben fora preso por defender a irmã e confrontar policiais. 

Coleção de livros vendida em Portugal retrata Rio de Janeiro como selva de bandidos (FOTOS)

Quando Nina é levada pelos bandidos à favela Beija-Flor, a polícia invade o local. A operação é filmada pelo helicóptero da TV G(L)OBO, representada de forma sensacionalista pelas falas de um repórter aéreo, como "Previsão meteorológica: chuva de cadáveres" e "Caros telespectadores, preparem-se porque o sangue vai continuar a correr nesta tarde sufocante no Rio!". O nome da emissora é grafado ora como GLOBO, ora como GOBO, sem o "L", mas o símbolo é o mesmo da maior rede de televisão do Brasil.

O terceiro tomo, "Carnaval selvagem", mostra traficantes armados no ensaio da escola de samba Unidos do Papagaio, cena mais comum em bailes funk do que em quadras carnavalescas. Em uma cidade que teve como prefeito, nos últimos quatro anos, um bispo evangélico avesso à festa cultural popular, a história em quadrinhos é um prato cheio para afastar os turistas europeus do já combalido Carnaval carioca, cancelado neste ano em função da pandemia de COVID-19.

Por falar em bispo, o penúltimo volume apresenta ao leitor uma personagem central no enredo espiritual da coleção. A "feiticeira" Capitu pode ser considerada também uma protagonista oculta da trama, pois em torno dela gira o destino de Rúben e de toda a favela Beija-Flor. 

Homônima da personagem machadiana que tem olhos de ressaca e de cigana oblíqua e dissimulada, Capitu aparece na publicação francesa como uma versão bem mais rasa e clichê, que mistura o candomblé com seitas satânicas, banalizando a religião em meio ao consumo de bebidas alcoólicas, sacrifício de animais e erotização da mulher negra. Corentin Rouge, filho do consagrado quadrinista francês Michel Rouge, também revelou à Sputnik Brasil que não frequentou terreiros de candomblé ou umbanda, apesar de ter assistido a uma "cerimônia de dança e transe bastante impressionante". 

Coleção de livros vendida em Portugal retrata Rio de Janeiro como selva de bandidos (FOTOS)

Doutor em Ciências Sociais aponta visão eurocêntrica na obra

É o etnocentrismo com roupagem de eurocentrismo na leitura de Getulio Fidelis, doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professor de sociologia e coordenador do curso pré-vestibular comunitário InVest, Fidelis morou por anos na Rocinha e no Morro Santa Marta, primeira favela a fazer parte do projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

"Sabemos que a Europa tem uma visão muito eurocêntrica do mundo, o que descamba para o etnocentrismo. Na visão deles, têm como referência a sua própria cultura, a Europa como o centro do mundo. Eu tinha uma visão muito crítica porque, nas favelas, principalmente na Rocinha, existe aquele turismo em que os estrangeiros vão com guias locais, e que chamamos, de maneira muito crítica, de safári de pobres", diz Fidelis à Sputnik Brasil. 

O cientista social, cuja tese de doutorado foi sobre a cooperação intergovernamental entre os governos federal e estadual do Rio de Janeiro entre 2007 e 2016, tem plena consciência a respeito dos laços entre violência, corrupção e patrimonialismo nas esferas de poder fluminense e carioca. Mesmo adotando um certo relativismo cultural, ele pondera sobre o risco de os males do Rio, vitrine do Brasil para o mundo, serem vendidos como produto único para a Europa. 

"Mas, me colocando no lugar deles [europeus], também teria a curiosidade de conhecer uma favela. É um local onde a ausência do Estado é perceptível, abrindo espaço para o tráfico e a milícia. São realidades do Rio, mas podemos problematizar o fato de eles estarem mostrando só isso e vendendo só esse produto. Sabemos que favela não é só tráfico e violência. Poderiam falar de outras coisas, da arte, até mesmo nas favelas: o grafite, a música, o rap, tudo isso", sugere.

Formada em História, a francesa Béatrice Loial, que também trabalha como dançarina em espetáculos de samba em Paris e já desfilou várias vezes no Carnaval carioca, vê com preocupação os impactos que a obra do seu conterrâneo podem causar no turismo do Rio de Janeiro. 

Enquanto a HQ é descrita na apresentação como "uma história reveladora de uma sociedade que está muito longe da realidade apresentada pelo discurso turístico e pela propaganda", Béatrice, acostumada a frequentar favelas cariocas, enxerga o livro como uma propaganda negativa para a Cidade Maravilhosa.

"Sinceramente, me chocou. Achei a capa muito forte. Prejudica muito a imagem do carnaval. Quem vai como turista não vê essas coisas. Essa imagem não acontece. Só se realmente há uma dançarina cujo namorado é traficante. O mundo do carnaval não se resume a isso, mas é alegria, festa e paixão pela arte nas comunidades, o samba, a cultura. Tira a reputação do Carnaval, que é o maior do mundo, para dizer que é o mais violento do mundo", avalia. 
Coleção de livros vendida em Portugal retrata Rio de Janeiro como selva de bandidos (FOTOS)

Confira a íntegra da entrevista com o autor de "Rio". Com a palavra, Corentin Rouge:

Sputnik: Você disse que já esteve no Rio cinco vezes. Mas já morou na cidade? Onde, em que bairro? Quanto tempo ficou no Rio no total?

Corentin Rouge: Fui ao Rio várias vezes durante seis ou sete anos, fiquei cerca de um mês, mas nunca morei lá. Eu estava hospedado em Niterói, a cidade em frente ao Rio de Janeiro, do outro lado da Baía [de Guanabara]. Depois, fiquei vagando por vários lugares, o máximo que pude, o Rio é tão grande.

S: Quais favelas você visitou para sua pesquisa? Teve contato com traficantes de drogas? Como foi? Ficou com medo em algum momento?

CR: Não, não tive nenhum contato com traficantes de drogas, não me arrisquei. Afinal, visitei muito pouco a favela. Andei pela Rocinha, creio que a maior favela do Rio, e também fui a uma favela em Niterói, foi onde encontrei o orfanato que desenhei no volume 1. Visitei, conheci as boas irmãs que trabalhavam lá e a irmã que desenhei é a que conheci. Para desenhar a favela, tirei algumas fotos na hora, mas com os álbuns de fotos, os filmes e tudo que existe na Internet, não falta documentação das favelas!

S: Você disse que o mais complicado foi entrar no prédio da polícia. Por quê ? Só tirou fotos lá ou conversou com policiais também?

CR: Sim, eu queria tirar fotos dos escritórios e das instalações dos policiais militares, mas foi complicado, eles ficaram desconfiados, queriam saber por quê. Eles olharam meu trabalho na Internet. Me perguntaram se o livro daria uma imagem positiva ou negativa da polícia... Respondi positivamente, claro! No final, fotografei alguns escritórios vazios, não me ajudou muito.

S: Você visitou terreiros de candomblé e umbanda? Você tem religião ou acredita em alguma coisa?

CR: Tentei visitar terreiros, quase aconteceu, mas no fim não consegui, foi o que mais me frustrou. Eu pude assistir a uma cerimônia de dança e transe em outro momento, foi bastante impressionante. Mas tenho discutido bastante sobre as práticas religiosas e suas crenças com pessoas que conheci. Não tenho religião, mas quando você aborda essas cerimônias ou práticas religiosas no Brasil, você sente que algo está acontecendo, que coisas não muito racionais estão acontecendo.

S: Você disse que quando mostrou o seu trabalho aos brasileiros, eles disseram que no Brasil não há HQs e a maioria vem da América do Norte? Não sei se entendi bem essa parte. Pode explicar melhor, por favor?

CR: Eu disse que a maioria dos quadrinhos que os brasileiros veem são quadrinhos americanos ou quadrinhos infantis. Eu vi bem poucos mangás, embora provavelmente também sejam muito desenvolvidos. Os brasileiros para quem mostrei meus quadrinhos ficaram surpresos ao ver um desenho realista, com um estilo clássico, que, além disso, representava o seu país e a cidade do Rio. E todos gostaram dos álbuns, mesmo que não entendessem. Por isso, espero que possa ser traduzido para os brasileiros e estar disponível em seu país... 

S: Em que países será publicado "Rio" fora Portugal e França? Há previsão de lançamento no Brasil? 

CR: 'Rio' existe atualmente em francês, holandês e português. Espero que em breve possa ser traduzido para o espanhol, italiano e inglês também, como meus álbuns anteriores. No momento, não há planos de vender a coleção no Brasil. 

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