A chegada da pandemia de COVID-19 trouxe desafios complexos para a vida acadêmica no Brasil. Para além da bravura e coragem de professores, servidores e alunos que mergulharam de cabeça no ensino remoto, há muitas questões neste processo que demandam explicação e maior atenção.
A Sputnik Brasil ouviu o professor de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Felipe Rosa, e alunos das principais universidades do país para saber se o "apagão" no ensino superior - representado pelas abstenções no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o cancelamento em massa de matrículas nas universidades - pode afetar a formação de mão de obra qualificada no Brasil.
Esta reportagem buscou responder, no entendimento desses protagonistas da vida acadêmica, o impacto da COVID-19 nas universidades. Recentemente, uma pesquisa revelou que caiu o percentual de pessoas interessadas em se matricular no ensino superior no primeiro semestre de 2021.
Alunos cancelando matrículas, e agora?
A queda preocupa Felipe Rosa, professor de física e vice-diretor do sindicato de docentes da UFRJ. Questionado se o cancelamento de matrículas nas universidades pode gerar consequências graves para o mercado de trabalho, ele entende que sim.
"Temo bastante. Verdade seja dita, se você está em uma área mais científica, como a física, o grande mercado de trabalho é o acadêmico, como universidades e institutos federais, um ecossistema ligado ao governo mesmo".
Segundo ele, "qualquer coisa que não esteja ligada aos militares está sofrendo um estrangulamento. Qualquer coisa que não esteja ligada aos militares está sendo sufocada de forma gritante", explicou.
"A mão de obra qualificada no Brasil, principalmente nas áreas tecnológicas, está sendo prejudicada desde 2010, quando houve uma reversão dos investimentos nas universidades, ao mesmo tempo em que se começou a estrangular os investimentos no ecossistema ligado a elas, as agências de fomento e etc. Isso está sendo uma perda sistemática. Estamos perdendo mão de obra qualificada há sete, oito anos. Com a chegada da pandemia, isso se agravou. Tentamos mitigar esse efeito. Fizemos diversas formaturas em 2020, e isso ajuda a oxigenar o mercado que precisa desses profissionais", disse Felipe Rosa.
"Se estivéssemos parados, sem atividades, esse problema seria muito agravado, seria um apagão grave de mão de obra".
A vida universitária na COVID-19
Para Letícia Leal, aluna de direito da UERJ que ingressou na faculdade em 2019, a questão das aulas on-line atrapalham bastante. "Eu sou uma pessoa com baixa concentração, então qualquer coisa já tira o meu foco. A aula on-line torna minha comunicação com os professores e colegas mais difícil, porque não tem esse negócio de olhar no olho do colega. É uma coisa que me deixa perdida".
Felipe Rosa entende que "precisamos pensar em como manter a universidade funcionando, na medida do possível, para que alunos possam continuar ingressando e que professores e técnicos possam trabalhar com o mínimo de segurança". Para ele, este é o grande desafio.
"Neste sentido, nas universidades, foi possível fazer uma transição para o ensino remoto provisória, chamada emergencial, de forma menos indolor. Os alunos já estão maiores, e do ponto de vista psicológico, eles estão preparados para enfrentar as aulas remotas. A transição do nosso trabalho, como professores, em média, foi difícil também, deu trabalho, mas foi possível. Foi certamente mais fácil do que no caso do ensino básico", assinalou.
Os alunos estão indo embora?
Confrontado com esta pergunta, Felipe Rosa acredita que "teria sido profundamente deletério se a gente não tivesse feito isso. Ele explica que "haviam setores dentro das universidades que defendiam essa possibilidade, de cancelar os semestres, interromper as atividades. Quando decidimos fazer a transição para o remoto, ao menos na UFRJ, já perdíamos dezenas de alunos por semana. Pessoas que, uma vez que as universidades não estavam funcionando, decidiram entrar em outras atividades, em especial as mais necessitadas. O setor mais vulnerável que acabava saindo", alertou.
A equação de fatores sociais que explica a fuga - neste contexto específico - dos mais pobres da vida acadêmica é clara: além da falta de condições para se acompanhar um semestre de modo remoto, via on-line, a questão financeira é fator agravante. Ao passo que setores da economia nacional desabaram com a COVID-19, em especial o pequeno comércio, alunos mais pobres precisaram ajudar com as contas em casa, trocando matrículas por salários.
Felipe entende que "a transição evidentemente não foi livre de problemas. Existia uma carência de acesso dos alunos que as universidades tentaram suprimir comprando e distribuindo chips para os estudantes, mas nem todos conseguiram. Eu acho que, dadas as condições, essa transição foi feita de forma satisfatória", defendeu.
Para Letícia Leal, no entanto, a questão é um pouco mais complexa. Ela pensa em sair do país para ter "uma carreira academia". Segundo ela, "aqui no Brasil não há pesquisa para trabalhar com o direito. Apenas se você exercer advocacia. Então, pensando na minha carreira, eu me vejo buscando opções de estudo no exterior".
Mercado de trabalho e a COVID-19: qual é o tamanho do impacto nos universitários?
Após ter explicado seus temores com relação ao cancelamento de matrículas nas universidades brasileiras, Felipe Rosa falou sobre a as condições do mercado de trabalho para alunos que desejam ingressar em pesquisas e bolsas de estudo.
"Com relação às condições de pesquisas científicas, estamos em um momento muito ruim, em uma conjuntura de um governo que é anticiência. Isso se reflete nos investimentos nas agências do governo, que estão sem fomento e com seus orçamentos estrangulados".
Felipe Rosa também explicou os problemas para as áreas de exatas e científica.
Segundo ele, "na área de exatas, o final da graduação não é o fim de tudo. É preciso mestrado, pós-graduação, doutorado, e sem o apoio das agências de fomento, é praticamente impossível para que ele [um aluno] consiga seguir sua carreira com mais preparação. Atualmente, uma carreira nas áreas científicas e tecnológicas, sem uma pós graduação, é praticamente insustentável. Isso gera um ciclo vicioso negativo. Se existe esse descaso com as ciências, as empresas percebem isso e não investem, não colocam em seu horizonte atividades de pesquisa".
Para Sofia Nascimento, aluna da UNB ouvida por esta reportagem, "sair do ambiente escolar e entrar na faculdade sempre foi meu sonho. Passar por isso dentro de um contexto de pandemia é muito frustrante. Eu criei uma expectativa muito grande para este momento, e realizar o ensino on-line na faculdade não é o suficiente para mim".
Ela explicou que entende que "é um momento muito delicado, o Brasil apresentou recordes no numero de desempregados e trabalhadores informais. Ela relatou que teve que sair do estágio atual em razão da pandemia. "Acredito que vai melhorar, mas no momento estou sem emprego, e poucos amigos meus estão sendo contratados. O que nos dá esperança é a nossa faculdade".
O que pode ser feito para mudar este cenário?
A preocupação do entrevistado com o sucateamento do mercado de trabalho no Brasil encontra novas dificuldades quando o assunto é apontar algumas possíveis soluções para mitigar os efeitos da pandemia dentro do ambiente universitário. Felipe revela que as disputas (sadias) dentro das universidades impossibilitaram, até agora, que uma só resposta pudesse ser apresentada.
Como ele mesmo define, "a minha opinião é controversa". Para ele, "a discussão atual, de alguns meses para cá, se reduz à questão da volta às aulas. Há uma compreensão do que seria a volta às aulas de uma forma muito extremada. A pandemia traz muita tristeza para todo mundo, mas é preciso tratar a volta das aulas/atividades de modo adequado".
"Eu acho que atividades onde o fator presencial é imprescindível, como dança, educação física, química, engenharia, a parte laboratorial das exatas, isso é muito importante. É preciso um plano de retorno dessas atividades, com aval dos professores e alunos, com máscaras, álcool gel e todas as precauções", afirmou.
Felipe Rosa diz que há um problema grave nestas discussões: "o que não pode é o debate ser interditado. E isso está acontecendo um pouco. Qualquer debate sobre retorno presencial, você ganha um selo de bolsonarista, e você está sendo interditado. A Medicina, por exemplo, não pode ser feita de modo remoto", sentenciou.
'Precisamos falar em volta às aulas'
O entrevistado acredita que, "a rigor, o problema da volta presencial na carreira científica pode ser divido em dois. No âmbito da pós graduação, esse problema já esta sendo informalmente mitigado porque algumas atividades laboratoriais não chegaram a ser interrompidas, e outras estão voltando devagar, com menos alunos, fazendo revezamento, fazendo distanciamento".
Porém, segundo ele, "na graduação são mais pessoas, e isso gera um problema maior, mais grave. Os cursos pararam e as pessoas não estão podendo praticar a ciência nos laboratórios. Isso pode funcionar para um ano de curso. Porém, pensando a longo prazo, é insustentável. A formação deles vai ser prejudicada. Suprimir dois anos de um curso de engenharia, química, aquela formação vai ser prejudicada. Eu acho que é preciso pensar agora, de forma muito séria, em um plano de retorno presencial às aulas, ou mesmo de extensão e prorrogação dos cursos".