Ontem (15), em uma leitura sobre as recentes trocas no Ministério da Saúde do Brasil, o vice-presidente Hamilton Mourão foi sucinto: "Difícil alguém consertar tudo". A frase, em si, revela uma espécie de reconhecimento por parte do governo de Jair Bolsonaro de que a situação da pasta havia chegado a um limite.
Além do caos com relação à falta de diretrizes centralizadas no combate à pandemia, e os problemas com a vacinação em massa, a tragédia em Manaus está em vias de ser cobrada no Congresso. Senadores admitem abertamente a possibilidade de uma CPI da Covid atingir o ex-ministro Eduardo Pazuello, assim como o presidente da República.
A troca de ministros - a quarta em dois anos - deflagrou a necessidade de uma mudança radical no combate à pandemia, assim como o temor do Executivo com as possíveis conclusões de uma CPI. Mas o que muda, de fato, no Ministério da Saúde? Quais são as intenções do presidente com a chegada de Marcelo Queiroga?
Em entrevista à Sputnik Brasil, o fundador da Anvisa, Gonzalo Vecina Neto, e o médico epidemiologista da UERJ Guilherme Werneck, comentaram as mudanças na pasta e suas consequências.
Eduardo Pazuello: general ou ministro?
O general Eduardo Pazuello assumiu o Ministério da Saúde quando o Brasil tinha 15 mil mortos pela COVID-19. Ele entrega o cargo com quase 280 mil. Na avaliação do vice-presidente do Brasil, "a realidade é que a gestão do Pazuello vem sendo muito criticada, muito contestada".
Para Guilherme Werneck, "o general [Eduardo] Pazuello foi incapaz de agir de forma efetiva no Ministério da Saúde para conter a pandemia da COVID-19 no país. O saldo da gestão do general Pazuello é de 280 mil mortes e 12 milhões de casos de pessoas infectadas. É uma gestão que representa um fracasso. E mais: [ele] sai do Ministério com um plano nacional de imunizações pouco efetivo e incapaz de garantir à população brasileira uma cobertura vacinal rápida e abrangente".
Expectativa para o novo ministro
Meio ao caos da pandemia, a troca no ministério foi vista com bons olhos para ambos especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil. Porém, eles lembraram que após a médica Ludhmila Abrahão Hajjar ter recusado o convite, médicos e autoridades sanitárias ligaram o sinal de alerta: havia algo acontecendo nos bastidores. Posteriormente, em entrevista, ela explicou:
"Acho que esse não é o momento para que eu assuma a pasta do Ministério da Saúde por alguns motivos, principalmente por motivos técnicos". Em seguida, ela disse que o que aprendeu "está acima de qualquer ideologia e acima de qualquer expectativa que não seja pautada em ciência".
Guilherme enfatizou que este é quarto ministro em dois anos. Segundo ele, os dois primeiros foram exonerados porque pautaram seu trabalho no conhecimento científico. O especialista explicou porque não acredita que novo ministro conseguirá impor uma nova agenda à pasta.
"Primeiro, ele não foi a primeira pessoa convidada para ocupar o cargo. A pessoa que foi convidada, a médica Ludhmilla Hajjar, manifestou ao presidente as condições para assumir o Ministério da Saúde: seguir a ciência e autonomia para mudar radicalmente o enfrentamento da pandemia no país. Mas isso não foi aceito pelo presidente", afirmou.
Em seguida, ele questionou: "Será que esse Ministério da Saúde vai enfrentar as ideias do presidente e promover uma mudança radical de rumos? Essa é a pergunta e a expectativa que os próximos dias responderão".
Fundador da Anvisa, Gonzalo Vecina partilha deste entendimento, e ainda fez uma alerta: "Eu acho que ele que pode durar menos tempo que o Nelson Teich". Segundo ele, "o presidente [Bolsonaro] tem opiniões absolutamente estapafúrdicas em relação ao isolamento social, o uso de máscaras... Se ele tentar fazer com que o ministro assuma essas opiniões, será desastroso".
Incerteza e um voto de confiança
Ao falar sobre o novo ministro, tanto Gonzalo Vecina quanto Guilherme Werneck defendem um voto de confiança ao profissional. Nas palavras do fundador da Anvisa, "quando a situação está assim, e há uma troca, a gente sempre espera que essa troca seja para melhor. Eu não quero que o Brasil fique pior, eu quero que o Brasil fique melhor. A minha esperança é que o Queiroga possa trazer isso".
Vecina avalia que Queiroga "é um médico bem formado, tem pós-graduação, e particularmente é uma liderança dentro da profissão, entre os cardiologistas, que o elegeram presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, uma das mais importantes que temos. O Queiroga é um homem bem preparado, e é bolsonarista. Aparentemente, por tudo o que ele tem falado, ele não é um negacionista".
"É uma pessoa bem informada, aparentemente já demonstrou que não é a favor do uso de medicamentos que não tenham sido aprovados para serem utilizados na pandemia. Minha esperança é que ele consiga fazer o que precisa ser feito: constituir uma boa equipe, substituir os militares que não entendem de saúde, e fazer um bom governo", afirmou.
Guilherme Werneck, por sua vez, disse que "o doutor Marcelo Queiroga se manifestou em outras ocasiões com aspectos que eu considero interessantes e básicos para que uma pessoa seja capaz de uma forma efetiva guiar o Ministério da Saúde. Ou seja: tratamentos devem se basear na melhor evidência científica, vacinas são as melhores opções para o controle da pandemia, e são necessárias ações de distanciamento social para que se reduza a transmissão".
O especialista advertiu, todavia, que essas manifestações não vão ao encontro dos interesses do governo Federal. Neste sentido, Gonzalo Vecina alertou: "o presidente [Bolsonaro] tem uma opinião hoje, e amanhã outra. Diferente é a posição do Queiroga. Precisamos dar um voto de confiança à ele".
O Ministério da Saúde precisa de autonomia
Ambos especialista ouvidos por esta reportagem acreditam que isolamento social é, ocasionalmente, necessário, e a autonomia do ministério, imprescindível. No entanto, o que se tem visto até agora é um governo federal que insiste em intervir nos assuntos da pasta da Saúde.
Neste sentido, Guilherme Werneck lembrou que "o doutor Marcelo Queiroga, logo após assumir a pasta, já fez manifestações dúbias em relação o uso de medicamentos que não são comprovadamente eficazes para a COVID-19. Ele também questionou a necessidade de ações mais fortes de isolamento social. As dúvidas [sobre a autonomia] permanecem".
Segundo ele, "não é preciso ser médico para ser Ministro da Saúde, mas é preciso ter capacidade de liderança e uma percepção do que é essencial". O general Pazuello não soube fazer isso. Ele aceitou a seguir como submisso às vontades do presidente da República".
Onde estão as vacinas?
Apesar de ter anunciado (e voltado atrás) inúmeras vezes o cronograma para vacinação no Brasil, inclusive destacando a centralização na compra de imunizantes, o general Eduardo Pazuello enfrentou problemas na distribuição de doses pelo país.
No momento, o Brasil se aproxima da marca dos dez milhões de vacinados contra a COVID-19. Ao menos uma dose de vacina foi aplicada em 10.081.771 de brasileiros, correspondente a 4,76% da população do país.
Para Gonzalo Vecina, os resultados são insuficientes. "A situação da compra de vacinas é tão desesperadora, que com relação ao Paulo Guedes, ele [novo ministro] receberá total apoio. O Paulo Guedes sabe que sem vacina, a economia não anda. Então vamos esperar que ele [Ricardo Queiroga] saia à campo e compre vacinas para serem entregues neste ano".
Guilherme Werneck também entende que "a questão do acesso à vacina é uma situação gravíssima no país".
Segundo ele, "o Brasil se atrasou muito, e dificultou muito esse processo, e chega muito atrasado em relação aos outros países no acesso à vacinação para uma população estimada em 180 milhões de pessoas. O problema não é só aquisição de vacinas", alertou.
Segundo ele, é preciso tocar outras negociações para chegada de insumos para produção de vacinas no Brasil. Werneck defende uma revisão do plano nacional de imunizações, que, segundo ele, é vago, impreciso e sem metas. Esse plano precisa ser revisto com participação de diferentes entes federativos.