Carta de Biden: efeito Lula pressiona, mas mudança de Bolsonaro não é 'factível', diz especialista

Embora as ações do ex-presidente Lula provoquem reação no governo Bolsonaro, que se sente ameaçado pelo petista, é improvável que atual mandatário mude sua postura, disseram especialistas à Sputnik Brasil.
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Nesta quinta-feira (18), o Palácio do Planalto divulgou o conteúdo de uma carta encaminhada a Jair Bolsonaro pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em 26 de fevereiro. O documento foi resposta a uma carta enviada por Bolsonaro por ocasião da cerimônia de posse do democrata, em 20 de janeiro. 

A divulgação do teor da missiva ocorreu somente 20 dias após seu recebimento, justamente após Luiz Inácio Lula da Silva, em entrevista para a CNN, ter feito declaração exortando Biden a colaborar com a vacinação no Brasil e em outros países.

​Após recuperar seus direitos políticos devido à decisão que anulou os processos contra ele na Lava Jato, Lula fez discurso defendendo o uso de máscara e condenando a gestão da pandemia do coronavírus pelo governo. Em seguida, Bolsonaro apareceu de máscara em evento, o que não é muito usual, e passou a adotar um discurso a favor da imunização. 

Para Marcos Cordeiro Pires, coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Universidade Estadual Paulista (IEEI-Unesp), "o retorno de Lula ao tabuleiro está pautando as ações do governo Bolsonaro". Por outro lado, ele diz que a demora em divulgar a carta mostra pouca disposição do Planalto em mudar de comportamento.

"A publicização da carta ocorreu, coincidentemente, somente um dia depois da entrevista de Lula. Diante desse fato, é plausível considerar que a plataforma de cooperação que Biden expressa na missiva teve pouca repercussão no governo, porque ela vai na contramão de sua ideologia e de suas ações internas e externas", disse o especialista à Sputnik Brasil

'Lógica que o levou ao poder'

Segundo nota da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), o presidente Biden "saudou a oportunidade para que ambos os países unam esforços, tanto em nível bilateral quanto em fóruns multilaterais, no enfrentamento aos desafios da pandemia e do meio ambiente".

Além disso, o presidente estadunidense destacou o histórico das duas nações na "luta pela independência, defesa de liberdades democráticas e religiosas, repúdio à escravidão e acolhimento da composição diversa de suas sociedades".

O professor da Unesp, no entanto, argumenta que "não há pontos de intersecção entre os governos de Bolsonaro e de Biden, à exceção da área de defesa, na qual os militares brasileiros almejam acesso às tecnologias dos Estados Unidos".

"Não é factível que Bolsonaro faça um giro de 180 graus em sua política. Isso iria contra lógica que o levou ao poder", disse Cordeiro, que também é pesquisador do INCT-Ineu (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos);

Para o professor, o governo brasileiro "se manifesta contra o 'globalismo' e as organizações multilaterais", alinha-se contra resoluções que buscam reforçar os direitos humanos, tem postura contrária aos consensos internacionais na questão da mudança climática e, no âmbito interno, incentiva ataques aos direitos de indígenas e é conivente com crimes ambientais.

Simbolismo que Bolsonaro 'nunca terá'

Segundo Tatiana Teixeira, professora colaboradora de política externa dos EUA do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Irid/UFRJ), a carta de Biden "não foi exatamente uma surpresa para um início de mandato", cumprindo "protocolo do primeiro aceno a um governo que lhe foi hostil desde sua vitória nas urnas".

Ela diz ainda que "nem Lula nem o PT deixaram de ser variáveis políticas ameaçadoras para Bolsonaro e seu núcleo, tanto no plano doméstico, quanto no internacional", embora, segundo Teixeira, o petista "tem um capital político e simbólico internacional" que o atual presidente "nunca teve e nunca terá".

Por outro lado, as recentes trocas de gentilezas entre Brasil e EUA não "encontram eco nas medidas e declarações do governo Bolsonaro no plano internacional até o momento".

"O que indica, por enquanto, baixa probabilidade de uma reversão dramática em seu perfil. Bolsonaro sempre agiu como se estivesse em campanha", disse à Sputnik Brasil a editora do OPEU (Observatório Político dos Estados Unidos). 

Reunião do G20

As cartas de Biden e Bolsonaro falam de cooperação entre os dois países de forma genérica, mas cita a do democrata cite a pandemia. Lula, por sua vez, sugeriu que o presidente estadunidense convoque uma reunião do G20 para discutir a distribuição de vacinas. O petista também afirmou que os EUA poderiam doar imunizantes excedentes.

Carta de Biden: efeito Lula pressiona, mas mudança de Bolsonaro não é 'factível', diz especialista

Para Rafael Ioris, professor de história da América Latina da Universidade Denver, os "primeiros sinais do Departamento de Estado em relação ao Brasil foram de que os Estados Unidos têm intenção de manter um bom relacionamento com a maior economia da América Latina".

Segundo ele, a pandemia seria uma ótima maneira dos norte-americanos contribuírem com a região. 

"De fato, tão logo os Estados Unidos consigam administrar a crise da COVID-19 em seu próprio território, seria muito importante que a maior força hemisférica pudesse ajudar aos países regionais em uma resolução melhor dos atuais desafios sanitários que enfrentam", disse à Sputnik Brasil o pesquisador do INCT-Ineu. 

Nova postura

Para Ioris, a doação de vacinas e recursos econômicos seria "crucial nesse processo", que dependeria, no entanto, da coordenação de "canais regionais de políticas multilaterais, que, infelizmente, encontram-se enfraquecidos".

"Isso seria não somente chave para a região, como também poderia ser um passo importantíssimo, e de certa forma fácil, para restabelecer um engajamento hemisférico mais construtivo, demonstrando assim uma nova postura após os anos de negligência da era Trump", disse o especialista.
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