Notícias do Brasil

'Herança autoritária': STF deve decidir futuro da Lei de Segurança Nacional

Desenterrada dos porões da ditadura militar, a Lei de Segurança Nacional já foi usada tanto contra o youtuber Felipe Neto como contra o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ). Cabe ao STF julgar se essa lei é compatível com a democracia, diz jurista.
Sputnik

Em 2021, uma lei que ficou anos esquecida no arcabouço jurídico brasileiro voltou ao centro do debate público.

Em março, a Lei de Segurança Nacional (LSN) foi a base da acusação feita contra o influenciador digital Felipe Neto, que chamou o presidente de genocida.

Em fevereiro, essa mesma lei foi usada por ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) para prender o deputado bolsonarista, Daniel Silveira (PSL-RJ), acusado de promover a violência contra um poder instituído.

A LSN, cujo texto mais recente é de 1983, é considerada por muitos um resquício da ditadura militar, que não deveria vigorar em uma ordem democrática.

"A LSN estava estacionada, porque o Brasil viveu 25 anos de prática democrática regular", disse a professora de Direito da PUC-SP, Adriana Ancona de Faria, à Sputnik Brasil. "Mas, infelizmente, as forças mais autoritárias do país acordaram para fazer uso da LSN."

Segundo ela, "a lei ainda trabalha com concepções autoritárias de Estado, como a ideia de um inimigo interno". "Aqueles que tenham críticas à situação vigente podem ser caracterizados como inimigos do Estado", explicou.

'Herança autoritária': STF deve decidir futuro da Lei de Segurança Nacional

A lei também faz uso de conceitos abstratos, como "alteração da ordem social", usados por "autoridades de plantão para perseguir crimes políticos, o que a ordem democrática não autoriza".

"A Constituição de 1988 não autoriza que a gente viva em espaços nos quais a crítica não possa ser exercida de forma plena", explicou Faria.

'Herança autoritária': STF deve decidir futuro da Lei de Segurança Nacional

No entanto, a LSN tem sido invocada pelo ministro da Justiça, André Mendonça, que solicitou a abertura de inquéritos contra críticos do presidente, como o escritor Ruy Castro, os jornalistas Hélio Schwartsman e Ricardo Noblat, dentre outros.

Posição do STF

A Organização dos Advogados do Brasil (OAB) estuda solicitar ao STF que avalie se essa lei é compatível ou não com a Constituição de 1988, através de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).

"Essa lei não deveria ter sido recepcionada pela Constituição Federal, isso é, ela não poderia vigorar depois de 1988, por ser contrária ao espírito democrático", acredita Faria.

Segundo ela, esse foi o entendimento do STF em casos anteriores, como o da lei de imprensa.

'Herança autoritária': STF deve decidir futuro da Lei de Segurança Nacional

"Os objetivos da lei de imprensa, quando ela foi elaborada, eram objetivos de censura, e por isso não foi recepcionada", explicou Faria.

Ela ressalta que "não é que absolutamente tudo que está previsto na LSN seja um problema ou uma previsão incabível na ordem democrática, mas a lei padece de um vício de origem, de falta de debate".

No entanto, o STF deverá enfrentar o dilema de ele próprio ter utilizado a LSN como base para prender o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), em 16 de fevereiro de 2021.

'Herança autoritária': STF deve decidir futuro da Lei de Segurança Nacional

"Eu tenho dúvidas sobre qual vai ser a ação do STF, porque a Corte pode querer ter uma legislação que de alguma maneira lhe permita atuar contra abusos que ela venha a sofrer como poder", disse a professora.

Felipe Neto versus Daniel Silveira

A LSN foi utilizada para enquadrar pessoas de polos diferentes do espectro político brasileiro, como o influenciador digital Felipe Neto, crítico da atual administração, e o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ).

"O STF terá que fazer um debate para diferenciar o que é liberdade de expressão e o que é violência contra as instituições democráticas", pondera Faria.

O caso de Silveira teria alguns agravantes, uma vez que ele ocupa cargo no Legislativo federal.

"Como deputado, ele não pode fazer uma crítica que seja desestruturante da ordem democrática", acredita Faria. "Ele jurou [defender] a Constituição quando foi empossado."

'Herança autoritária': STF deve decidir futuro da Lei de Segurança Nacional

Além disso, a mensagem do deputado teria maior alcance do que a de um cidadão comum, uma vez que ele dispõe de "espaço de mobilização como um representante do poder público".

Felipe Neto também é uma pessoa pública e suas palavras têm o poder de mobilizar grupos sociais.

"Mas a crítica que ele fez não foi contra a ordem democrática", argumenta Faria. " Ter um entendimento de que o presidente é um genocida é um posicionamento político diante do que você está vivendo."

Além disso, o posicionamento do influenciador "não estimula a violência contra o presidente".

'Herança autoritária': STF deve decidir futuro da Lei de Segurança Nacional

Outros casos como o do apresentador Danilo Gentili também trazem questionamentos acerca da apologia à violência.

Gentili foi alvo de queixa-crime baseada na LSN por ter postado mensagem em rede social defendendo que "eu só acreditaria que esse país tem jeito se a população entrasse agora na câmara e socasse todo deputado que está nesse momento discutindo PEC de imunidade parlamentar (sic)".

Segurança nacional democrática

Faria acredita que as instituições devem resolver as contradições da LSN e adotar nova lei para regular esse debate.

"Todos os Estados democráticos têm uma perspectiva de segurança nacional. Mas o nível de criminalização consuma ser baixo, só criminalizando condutas decorrentes de uso efetivo ou ameaça de uso de armas de fogo e violência", ressaltou a professora.

O debate seria urgente, uma vez que " estruturas autoritárias [...] do país poderão fazer uso da LSN para impedir manifestações políticas contrárias ao governo".

'Herança autoritária': STF deve decidir futuro da Lei de Segurança Nacional

"No fundo, a lei permite isso, uma vez que ela carrega uma marca autoritária pré-1988. Ela é uma herança autoritária, que não passou pelo debate político do que é uma concepção democrática de segurança nacional", concluiu a especialista.

Nesta quinta-feira (18), manifestantes foram detidos pela Polícia Militar por empunhar cartaz com a frase "Bolsonaro Genocida", na frente do Palácio do Planalto, com base na LSN. Os manifestantes foram liberados posteriormente por delegado federal, com a exceção de um integrante do grupo, que tinha passagem pela polícia por desacato à autoridade.

Comentar